quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Resenha do livro “As idéias de Barthes” de Jonathan Culler.

Marcos Holanda


1 Um homem múltiplo.

Barthes é famoso por razões contraditórias. Para muitos, eles é, acima de tudo, um estruturalista, talvez o estruturalista, defensor de uma abordagem de caráter sistemático científico dos fenômenos culturais. O mais proeminente promotor da semiologia, a literatura estruturalista. Barthes representa não a ciência, mas o prazer: os prazeres vinculados à leitura e ao direito de o leitor fazer uma leitura pessoal, pelo prazer que puder obter. Contra uma crítica literária que se concentrava nos autores - interessado em recuperar o que os autores pensavam ou pretendiam dizer - , Barthes defende o leitor promovendo a literatura que lhe oferece um papel ativo e criativo.

Barthes é famoso como um agente daquilo que denomina a morte do autor, a eliminação dessa figura do lugar central dos estudos literários e do pensamento crítico. Hoje sabemos, escreveu ele em 1968, Aqui o texto não é uma seqüência de sala que veicula um único sentido teológico (a mensagem de um autor Deus), mas um espaço multidimencional, no qual uma variedade de escrituras, nenhuma delas original, se combina e se choca. Ele nos incitou, com algum efeito, a que estudássemos os textos, e não os autores.

Barthes é um pensador original, mas tenta arrancar as raízes daquilo que semeia assim que ocorre a germinação. Quando florescem, seus projetos o sem ele e a despeito dele. O trabalho do crítico, sustenta Barthes, não é descobrir o significado secreto de uma verdade do passado - mas o constituir o inteligível do nosso tempo. construir L’intelligible de notre temps equivale a desenvolver estruturas conceituais para lidar com fenômenos do passado e do presente. O que sempre me fascinou na vida, disse ele a um entrevistador, é o modo como as pessoas tornam seu mundo inteligível.

2 Historiador da literatura.

Barthes sempre esteve interessado pela história, por várias razões. Em primeiro lugar, a história funciona como o posto da natureza. Ao mostrar quando e de modo as várias praticas vêm a existir, o estudo histórico buscar desmistificar a ideologia de uma cultura, expondo - lhes os pressupostos como ideologia. Em segundo lugar, Barthes valoriza a história em função das peculiaridades de outras épocas e daquilo que elas nos podem ensinar a respeito do presente. A história é interessante e valiosa precisamente pela sua diversidade. Em terceiro lugar, a história é útil porque pode fornecer um relato para tornar o presente inteligível. Eis o que busca Barthes em sua mais antiga obra de crítica, le degré zero de l’écriture. Ele esboça uma história do escrever (uma história da idéia e da instituição da literatura) que vai citar a literatura contemporânea e vai nos auxiliar a julgá-la.

A linguagem de um autor é algo que ele herda, e seu estilo é uma estrutura pessoal, talvez subconsciente, de hábitos e observações verbais, mas sua forma de escriture é algo que ele escolhe, a partir da possibilidades historicamente disponíveis. Trata - se de uma forma de conceber a literatura um uso social da forma literária. Há inúmeras diferenças de pensamento e de estilo na forma clássica de escrever. Onde os escritores haviam pressuposto, anteriormente, a universalidade, agora a escritura deveria refletir sobre si mesma como escritura. Escrever era lutar de forma auto-consciente com a literatura. A literatura séria deve questionar-se a si mesma, assim como deve questionar as convenções mediante as quais a cultura ordena o mundo, aí reside o seu potencial radical. Mas nenhuma escritura pode ser permanentemente revolucionária, pois cada violação das convenções da como uma nova forma de literatura. Num artigo sobre a história da literatura incluído em Sur Racine, Barthes critica os historiadores da literatura por disporem de um método histórico mas negligenciarem a natureza histórica do seu objetivo de estudo.


3 Mitólogo.

Ao discutir aspecto da cultura de massas, Barthes procurava analisar os estereótipos sociais apresentados como naturais, desmascarando, como imposição ideológica o que não é preciso dizer.

O que Barthes quer dizer com mito? Em muitos casos, conforme ele revela, as implicações ideológicas daquilo que se afigura natural, mito significa uma ilusão a ser exposta.

Barthes percebe o dilema do mitólogo: o vinho é ao mesmo tempo bom e, ao mesmo tempo, a bondade do vinho é um mito. O mitólogo preocupa - se com a imagem do vinho - não com suas propriedades e efeitos, mas com os sentidos de segunda ordem que lhe são agregados pela convenção social. Partindo do mito como uma ilusão, Barthes logo vai acentuar o fato de o mito ser uma forma de comunicação, uma linguagem, um sistema de sentidos de segunda ordem, semelhante à ecriture discutida em seu livro anterior.

Lé degré zéro, como Barthes agora enfatiza, não era apenas um exercício de história literária, mas uma mitologia da linguagem literária. Ali define a escritura como o significante do mito literário, isto é, uma forma já cheia de sentido [lingüístico] que recebe do conceito de literatura [da época] um novo significado. Qualquer que seja seu conteúdo lingüístico, a escritura significa um atitude com relação à forma literária e portanto, com relação ao sentido e à ordem, ela promove um mito da literatura e talvez desse mito, adquire uma função no mundo.

Um mito sempre conta com um álibi pronto: seus praticantes sempre podem negar que um sentido de segunda ordem esteja envolvido, afirmando que vestem certas roupas por uma questão de conforto ou de durabilidade, e não de sentido. Mas, a despeito de todas as negativas os sentidos místicos estão em operação. A má fé presente nesse álibi constitui uma das coisas que Barthes considera mais repreensível no mito.

Em 1971, Barthes notou que analisar e denunciar mitos não era o bastante: em lugar de tentar promover um uso mais saudável dos signos, devemos tentar destruir o próprio signo. A desmistificação não elimina o mito mas, paradoxalmente. dá-lhe maior liberdade. O mito é multiforme e talvez indomável.

4 Crítico.

Barthes sempre foi um mestre da surpresa, e seu livro inicial, a respeito de Michelete, exibe algo desse talento. Le degré Zero celebra os projetos de leitura autoconsciente, modernista, e imaginamos seu autor voltados - se, em seguida, para Camus ou Banchot - contemporâneos que tenta praticar a literatura anti-literária que ele havia descrito.

Barthes produziu uma obra em estreito contato os desenvolvimentos correntes da crítica francesa, onde um modelo para a discussão da importância das substância materiais para o pensamento poético e não-poético emergiu da psicanálise dos quatro elementos - terra, ar, fogo e água - de Gaston Bachelard. Á luz do trabalho posterior de Barthes, há duas coisas marcantes:

Em primeiro lugar, o método de Barthes permite-lhes tornar a escritura de Michelet uma série de fragmentos espetaculares, ao associar o interesse da escritura, não á continuidade, ao desenvolvimento, á estrutura - todas elas qualidades inegáveis do trabalho de Michelet enquanto historiador -, mas ao prazer dos fragmentos textuais, o prazer que leitores podem obter de frases estranhas e de suas imagens. Em segundo lugar, esse prazer textual, que leva Barthes a escrever em torno e acerca desses textos, está ligado ao corpo. É pressuposto um vínculo entre a escritura e os experiências corporais de espaço e substância. Barthes fala do seu amor pela scription, o ato de escrever: Quem escreve é a mão e, portanto, o corpo: seus impulsos , controles, ritmos,


pensamentos ,escorregadelas , complicações, evasões - em suma, não a alma, mas o sujeito aliviado e do seu desejo e do seu inconsciente Ele diz ainda que, nos escritores de outras épocas, há uma oportunidade de vanguarda sempre que o corpo, e não a ideologia, escreve. Em Essais crítiques, Barthes afirma que o escritor produz conjeturas de sentido , formas, por assim dizer, e o mundo as preenche. Isso tornaria a crítica a arte do preenchimento, ou talvez devessemos dizer, seguindo a noção bathesiana do escritor como experimentador público, que o critico experimenta com preenchimentos, testando num autor ou obra as linguagens e contextos, disponíveis.

Em Le digré zéro, Barthes havia afirmado que a adoção de uma ecriture - um modo de conceber a literatura, um uso social da forma literária - tem implicações políticas e que a experimentação formal pode ser uma forma de compromisso, como ocorre nas tentativas de escrever literatura anti-literária e de alcançar uma escritura de grau-zero. Robbe Grillet, aos olhos de Barthes, parecia estar empreendendo algo mais radical, ao tentar esvaziar ou suspender o sentido através da frustração de nossos pressupostos a respeito da inteligibilidade e do bloqueio dosa nossos movimentos interpretativos regulares. Barthes viu em sua rejeição da narrativa, da anedota, da psicologia e do significado dos objetivos um poderoso questionamento do modo como ordenamos a experiência.

Essa explicação enfatiza duas coisas. Em primeiro lugar, Barthes vê os escritor Robbe

-Grillet, com suas descrições que bloqueiam a indução do sentido, como texto que são apenas superfície. A profundidade e a interioridade tem sido, tradicionalmente, o domínio do romance

que tenta mergulhar fundo nas personagens e sociedade, chegar ao essencial, e que seleciona

detalhes de acordo com isso. Em segundo lugar, Barthes louva Robbe-Grillet por adotar uma

écriture que Aquebra o fascínio da narrativa. Os romances normalmente contém histórias: ler um romance é seguir alguma espécie de desenvolvimento. Barthes gosta de fragmentos e concebe

formas de fragmentos obras com continuidade narrativa. Nos romances de Robbe-Grillet, todavia

Barthes encontra textos que resistem ao ordenamento narrativo.

A tarefa da literatura, escreve Barthes no prefácio de Essais critiques, não é, como se costuma pensar, expressar o inexprimível - esta seria um Literatura do espírito, como ele desdenhosamente a denomina. A literatura deve tentar, em lugar disso, A tornar o exprimível inexpresso, problematizar os sentidos que atribuímos ou supomos automaticamente. Em sua aula inaugural no Collége de France, Barthes declarou: Entendo por literatura, não um corpo ou uma seqüência de obras, nem um domínio comercial ou área de estudo, mas a complexa inscrição dos traços de uma prática: a prática da escritura.

5 Polemista.

Barthes apresenta duas queixas contra a crítica acadêmica. Enquanto a crítica interpretativa deixa clara suas posições filosóficas ou ideológicas - existencialismo, marxismo, fenomenologia, psicanálise, semiótica - , a crítica acadêmica afirma ser objetiva, alegando não ter ideologia. A crítica acadêmica rejeita a interpretação imanente. Ela quer explicar os fatos externos à obra, fatos a respeito do mundo e das fontes do autor. A crítica acadêmica, afirma Barthes, não aceitará que a interpretação e a ideologia possam decidir trabalhar num domínio que se encontre totalmente no interior da obra. A crítica acadêmica da França, diz Barthes, é hostil à análise imanente, porque associa conhecimento à explicação causal e por que é mais fácil avaliar o conhecimento que as interpretações dos alunos. Uma teoria da literatura concentrada na importância do conhecimento a respeito da vida e da época do autor presta-se a exames e a atribuição de notas.

O crítico é um escritor que tenta cobrir a obra com sua linguagem, gerar um sentido derivando-o da obra. A poética, por outro lado, não interpreta as obras, mas tenta descrever as estruturas e convenções de leitura que as tornam inteligíveis, permitindo-lhes expressar o conjunto de sentidos a que deram origem junto a leitores de diferentes épocas e crenças.

Para Barthes, de fato, a interpretação deve ser extravagante. A crítica que permanece no âmbito da opinião transmitida não teria sentido ou sabor. Sua obra, Crítique et Vérité oferece uma excelente panorâmica da crítica e um lúcido programa para uma ciência da literatura, ou poética estruturalista.


6 Semiólogo.

Barthes foi um dos primeiros defensores da semiologia e, bem mais tarde, ao escolher o título de sua cadeira no College de France, chamou seu campo de semiologia.

Eu tinha a impressão de que uma ciência dos signos poderia estimular a crítica social de que Sartre, Brecht e Saussure poderia juntar forças nesse projeto.


Barthes só poderia continuar a pensar a si mesmo como semiólogo, ao que parece, definindo a semiologia como uma perspectiva que questiona outras disciplinas estabelecidas.

O mais importante é a distinção entre langue [língua] e parole [fala], de Saussure. A langue é o sistema linguístico, aquilo que se aprende quando se aprende uma língua; a parole é a fala,os infinitos enunciados, falados e escritos, de uma língua.

A linguìstica e, por analogia, a semiologia, têm como alvo a descrição do sistema subjacente de regras e distinções que tornam possíveis os eventos significativos. A semiologia tem como base a premissa de que, como as ações e objetos humanos são dotados de sentido, deve haver um sistema de distinções e convenções, conscientes ou inconscientes, que geram esse sentido. Para um semiólogo que estuda o sistema alimentar de uma cultura, por exemplo, a parole é constituída por todos os eventos relacionados com o ato de comer, e a langue é o sistema de regras subjacentes a esses eventos, regras que definem o que é comestível, quais pratos combinam ou não entre si, de que forma são combinados para formar refeições em resumi, todas as regras e prescrições que permitem que os pratos sejam culturalmente ortodoxos ou não-ortodoxos.

Barthes afirma em Essais Crítiques, Aa moda e a literatura significam com força, com sutileza, co, todas as complexidades de uma arte imoderada; mas, se se refletir mais, elas não significam nada, sua existência reside no significar, e não no que é significado.


7 Estruturalista.

A resposta imediata à pergunta Quem é Roland Barthes? é um estruturalista francês.

Barthes definiu o estruturalismo como uma forma de analisar artefatos culturais que tem como origem os métodos da lingüística. Tratando os fenômenos como produto de sistemas subjacentes de regras e distinções, o estruturalismo toma da lingüística dois princípios essenciais: o princípio segundo o qual as entidades significativas não tem essência e são definidas por redes de relações, internas e externas, e o princípio segundo o qual explicar fenômenos de significação é descrever o sistema de normas que os torna possíveis. A explicação estrutural não busca os antecedentes ou causas históricas, mas discute a estrutura e a significação de objetos ou ações particulares através do estabelecimento de relações entre eles no âmbito do sistema no qual operam. O alvo de toda atividade estruturalista, escreveu Barthes, seja ela reflexiva ou poética, é reconstituir um objeto de forma a tornar manifestas suas regras de operação.

A novidade, concluiu, é uma forma de pensamento (ou uma poética), que busca menos atribuir sentidos acabados aos objetos que descobre que saber como o sentido é possível, a que custo e por que meios. Para entender o funcionamento das mais interessantes e inovadoras obras literárias, é preciso reconstruir os sistemas de normas que parodiam, aos quais resistem ou aos quais destroem.

Podemos distinguir quatro aspectos do estudo estruturalista da literatura. Em primeiro lugar, há uma tentativa de descrição da linguagem da literatura em termos lingüísticos, de modo a captar o que as estruturas literárias apresentam de específico.

Barthes tem uma abordagem prática com relação à lingüística e não tenta fazer descrições lingüísticas sistemáticas, ao contrário de alguns estruturalistas.

O segundo grande projeto estruturalista é o desenvolvimento de uma narratologia, que identifica os constituintes da narrativa e suas possíveis combinações em diferentes técnicas narrativas. A partir do trabalho do formalista Russo, Vladimir Propp, cuja gramática dos contos populares descreve motivos básicos e suas possibilidades de combinação, os estruturalitas franceses concentram-se particularmente na trama, procurando identificar seus elementos básicos, o modo como os efeitos de completude e de incompletude são produzidos. Além do estudo sistemático da narrativa, os estruturalistas tentam mostrar de que forma o sentido literário depende dos códigos produzidos pelos discursos anteriores de uma dada cultura. O estruturalismo patrocinou a emergência do leitor como elemento central da crítica e se, como afirma Barthes, Ao nascimento do leitor deve ocorrer a expensas da morte do autor( que já não é tratado como fonte e árbitro do sentido), trata-se de um preço que ele está disposto a pagar.


A análise estrutural não se dirige à descoberta de sentidos secretos: Uma obra é como uma cebola, diz Barthes, uma construção em camadas (níveis ou sistemas), cujo corpo, no final das contas, não contém coração, núcleo, segredo, princípio irredutível, nada além do infinito dos seus próprios invólucros que não envolvem senão a unidade de suas próprias superfícies. Uma análise estrutural não produz uma explicação do texto, mas parte de uma visão inicial do seu conteúdo e entra no jogo dos códigos responsáveis por ele, identificando seus termos, esboçando suas seqüências, mas também postulando outros códigos, que surgirão no âmbito da perspectiva dos primeiros. Ao identificar códigos e comentar sua função na literatura clássica e modernista, Barthes visa não a interpretar Sur Racine, mas a analisá-lo como uma construção intertextual, produto de vários discursos culturais. Hoje sabemos, escreve Barthes em Image, music, text, que o texto não é uma seqüência de palavras que veicula um único sentido teológico (a mensagem de um autor deus), mas um espaço multidimensional, no qual uma variedade de escrituras, nenhuma delas original, se combina e se choca. O texto é um tecido de citações retiradas de inúmeros centros de cultura. A quebra do texto, em busca dos códigos, permite que Barthes faça uma leitura atenta, ao mesmo tempo em que resiste à presunção da leitura atenta anglo-saxã segundo a qual é preciso que todo detalhe seja apresentado como contribuição à unidade estética do todo. Interessado nas qualidades plurais da obra, ele recusa a ver uma estrutura unificadora geral, mas pergunta como cada detalhe funciona, e com que códigos cada um deles se relaciona e se mostra interessado em descobrir funções.

8 Hedonista.

O texto é um objeto de prazer, mas o prazer deve ser tomado. O desafio da literatura é: como pode essa obra nos interessar, surpreender, preencher?

O que me agrada numa narrativa, diz Barthes, não é diretamente seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas as abrasões que empenha a uma delicada superfície: corro, salto, levanto a cabeça, volto a mergulhar. O prazer pode vir do estar à deriva, que ocorre sempre que não respeito o todo e sou levado pela linguagem que parece opaca, teatral ou mesmo excessivamente precisa. Barthes imagina uma estética baseada no prazer do consumidor e uma tipologia dos prazeres da leitura - ou dos leitores do prazer, na qual cada neurose de leitura encontra um prazer textual particular: o fetichista é um amante de fragmentos, citações, fórmulas; o obsessivo, um manipulador entusiasta de metalinguagens, glosas e explicações; o paranóico, um intérprete das profundidades, que procura segredos e complicações; e o histérico, um entusiasta que abandona todo o distanciamento crítico para se jogar no texto. O prazer do texto é o momento no qual meu corpo segue suas próprias idéias. Ou ainda: Cada vez que tento analisar um texto que me deu prazer, não é minha subjetividade que encontro, mas meu indivíduo, o dado que torna meu corpo distinto de outros corpos e lhe apropria seu sofrimento ou seu prazer: é meu corpo de fruição que encontro. E esse corpo de fruição é também meu sujeito histórico; pois equilibro o jogo contraditório do prazer(cultural) e do êxtase (não cultural) ao final de uma combinação extremamente complexa de elementos biográficos, históricos, sociológicos e neuróticos( educação, classe social, configuração da infância, etc) .

A referência ao corpo é parte da tentativa geral de Barthes no sentido de produzir uma explicação materialista da leitura e da escrita. A substituição de mente por corpo é compatível com a ênfase de Barthes na materialidade do significante como fonte de prazer.

Nem a cultura nem sua destruição são eróticas, escreve Barthes; a fenda entre elas é que se torna erótica. Não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não o interessa; ele deseja o lugar de uma perda, lacuna, corte, redução, a dissolução que toma conta do leitor no momento do enlevo. Um corpo nu é menos erótico que o ponto A em que as vestes deixam lacunas.

As técnicas de vanguarda, ou ruptura das expectativas tradicionais, são mais prazerosamente surpreendentes como lacunas de um discurso legível: Flaubert, por exemplo, tem um modo de cortar, de perfurar o discurso, sem torná-lo sem sentido. O texto precisa de sua sombra; essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de assunto: fantasmas, bolsos, traços, nuvens necessárias; a subversão deve seguir seu próprio claro-escuro. Mesmo assim, as descontinuidades, dissoluções, indeterminações e momentos de ilegibilidade implicam, diz Barthes, um certo enfado.


9 Escritor.


Quando relembro seu trabalho, em Barthes, por Barthes, Barthes não vê um crítico, nem um Semiólogo, vê um escritor e um verbo intransitivo: há apenas escrever (ou escrever um texto.)Em Sur Racine, Barthes afirmou que há três espécies de história literária: Uma historia dos significados literários, uma História dos significantes literários e uma história da significação literária. Como escritor, Barthes é original e formidável:um mestre da prosa francesa que cunhou uma linguagem nova e mais viva de discussão intelectual. Aquilo que escrevo a meu respeito jamais é a última palavra: quando mais sincero, tanto mais interpretável sou... meus textos são desarticulados, nenhum deles se encaixa no outro; o último em termos de sentido: texto sobre texto, que jamais ilumina qualquer coisa. As qualidades de Barthes podem ser melhor exibidas em fragmentos como o que apresento a seguir, uma reflexão constrangida sobre a escritura: Há um tom aforístico pendendo sobre esse livro (nós, alguém, sempre).ora, a máxima é cúmplice de uma nação essencialista da natureza humana; vincula-se á ideologia clássica: trata-se da mais arrogante (freqüentemente a mais grosseira) forma de linguagem. Por que não rejeitá-la então?A razão é, como sempre, emotiva:escrevo máximas (ou esboço seu movimento) para me tranqüilizar: quando surge algum distúrbio, eu atenuo ao me confiar a uma fixidez que excede minhas forças:Na verdade, é sempre assim: e a máxima nasce. A máxima é uma espécie de

frase-nome e nomear é pacificar. Além disso, isso também é uma máxima: é algo que atenua meu temor de buscar extravagância ao escrever máximas .

10 Homem de letras.

Não tenho Biografia, declara Barthes.

Barthes busca reformar os signos : Larvatus prodeo (avanço apontando para minha máscara)- eis o que é repetidamente proposto como uma ideal das atividades de significação. Uma ciência dos signos parece ser a forma de reunir aquilo que ele vê como as tendências mais interessantes da pesquisa contemporânea: A psicanálise, o estruturalismo, a psicologia eidética ,alguns novos tipos de crítica literária -de que Bachelarde deu os primeiros exemplos -já não cuidam dos fatos, exceto se estes forem dotados de significação . Ora postular uma significação equivalente a recorrer à semiologia. O texto, uma de suas palavras-maná passou a representaram objeto indomável, uma perspectiva interminável de relações significativas. Formando a partir de discursos que o antecedem, o texto se relaciona, em última análise, com a totalidade da cultura. A noção do leitor reuniu-se àquela de texto para formar um par indomável: contra toda tentativa de dominar o texto através de análise, poder-se-ia enfatizar o papel vital do leitor- não há sentido ou estrutura exceto aqueles que o leitor produz. Mas, contra toda tentativa de tornar o leitor o objeto de uma ciência (psicológica ) poder-se-ia acentuar o fato de os texto serem dotados de recursos para derrubar os pressupostos mais firmes dos leitores e para desapontar suas estratégias mais poderosas.

O PLURILINGUISMO NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE.

Marcos Holanda Almeida

O PLURILINGUISMO NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE.

ANÁLISE

Oswald de Andrade sempre procurou, com seu estilo paródico, satírico e arrojado, não só romper com os cânones do passado, mas também a partir de sua devoração crítica (antropofagia) criar as bases de uma nova literatura, verdadeiramente afinada com a modernidade. Seu romance invenção, Memórias Sentimentais de João Miramar, é a primeira experiência com verdadeiro êxito deste seu propósito, uma vez que intercala ou mesmo enquadra diversos gêneros literários em um nova forma poética, paródica e satírica.

O plurilingüísmo deste tipo de criação é portanto de caráter distintivo, pois nos permite perceber até que ponto chega a radicalidade da poética oswaldiana.

Vejamos um destes momentos onde o autor nos conduz, por meio de uma linguagem infantil às primeiras experiências de plurilingüísmo:

-Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não tem pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém. (1990, p 45).

Nota-se neste trecho que compõe o início das memórias de João Miramar como se cruzam parodicamente em seu pensamento pedaços da oração Ave Maria e a descrição do manequim de sua mãe.

Mais adiante, Miramar caracteriza-nos sua visão de espanto por meio de uma ironia sarcástica no capítulo 8 Fraque do Ateu ( p.47) onde confundem-se segundo a sua descrição o Fraque ( Vestimenta de Padre ) que denota todo o ambiente religioso e conservador em que ele vive, e o Ateu (diz-se daquele que não crê em Deus) aludindo assim, dialética e parodisticamente a tudo o que a sociedade lhe impunha.

João Miramar percorre assim todas as lembranças de sua infância aliadas à fragmentação e a enumeração caótica com que uma criança descobre e questiona o mundo. Esta visão infantil aproxima-se de certo primitivismo, já que ambas partem de certa ingenuidade na visão de mundo lógico, mecanizado e racional.

O plurilingüísmo descrito por Miramar possibilita-nos, portanto, uma nova interpretação da cultura brasileira por meio de sua assimilação destruidora e recriadora da cultura Européia, que visava a uma civilização desrecalcada e anti-autoritária.

Dessa forma, vemos aqui uma possível aproximação da antropofagia oswaldiana com o plurilingüísmo de Bakhtin, uma vez que ambos pressupõem a presença marcante do discurso de outrem na linguagem de outrem. Bakhtin (2002) chega a enfatizar que este recurso serviria justamente para refratar a expressão das intenções do autor. A paródia literária serviria ainda, segundo Bakhtin, para demarcar um momento de ruptura e transformação de um novo momento literário, serviria portanto como uma espécie de releitura crítica e criativa de discursos anteriores. Chegando justamente no ponto onde um possível encontro com o ideal oswaldiano é possível: A releitura crítica e criativa de discursos anteriores. A sátira de uma linguagem artificial, a paródia de uma linguagem oca e pretensiosa, como bem podemos observar no prefácio das Memórias Sentimentais de João Miramar na linguagem apresentada por Machado Penumbra.

Oswald de Andrade, por meio de seu estilo enciclopédico, acaba por registrar, ainda que fragmentariamente, toda uma gama de gêneros e estilos literários, endossando ainda mais a presença do plurilingüísmo em sua obra. Oswald vai ainda mais longe em seu plurilingüísmo quando retrata o personagem Minão da Silva, um agregado da fazenda, sem estudos, mas atraído pela literatura, que gosta de se expressar literariamente, escrevia cartas cheias de erros gramaticais, uma sátira dentro da sátira. Um discurso, portanto, plurilíngüe por excelência.

Um dos traços mais importantes deste tipo de discurso é a ruptura dos traços estilísticos que serviriam para demarcar as diversas vozes que se apresentam, assim a fala de outrem nunca está nitidamente separada do discurso do autor (Bakhtin,2002, p. 103). A radicalidade deste plurilingüísmo, é ainda maior se levarmos em consideração da técnica empregada por Oswald na composição deste romance, uma vez que o enredo tradicional não existe, pois a sucessão de seus capítulos instantes, de seus fragmentos, se faz como se fosse uma prosa cinematográfica, isto é, desenvolvida com descontinuidade cênica, criando assim uma espécie de simultaneidade dos acontecimentos. Esta tentativa de simultaneidade aliada a justaposição de textos de várias naturezas: cartas, diário, discursos, poemas, teatro, etc..., dão ao plurilingüísmo oswaldiano uma acentuada força dialógica, enfatizando ainda mais o sentido de sátira que tal tipo de discurso envolve. Enfim, a produção romanesca de Oswald parece se enquadrar perfeitamente numa das principais formulações de Bakhtin; a de que os gêneros intercalados ou enquadrados são as formas fundamentais para introduzir e organizar o plurilingüísmo no romance.

O plurilingüísmo é entendido aqui, portanto, como uma ferramenta importantíssima para a compreensão da tessitura poética oswaldiana uma vez que abre caminhos para múltiplas leituras discursivas a partir da concepção dialógica de Bakhtin.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: O plurilingüísmo no romance. São Paulo: Annablume, 2002. p.107-133.

ANDRADE, Oswald de.Memórias Sentimentais de João Miramar. - São Paulo: Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, São Paulo: Globo, 1990.

CAMPOS, Haroldo de. Uma Poética da Radicalidade, In: Poesias Reunidas – Oswald de Andrade. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1966.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

JAKSON, Kenneth David. A prosa Vanguardista na Literatura Brasileira: Oswald de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1978.


O NARRADOR COMO REGENTE: O PAPEL DO NARRADOR NO ROMANCE DE DOSTOIÉVSKI.

O NARRADOR COMO REGENTE: O PAPEL DO NARRADOR NO ROMANCE DE DOSTOIÉVSKI.

Marcos Holanda

Análise

Este ensaio tem por objetivo básico analisar a posição do narrador no romance de Dostoiévski segundo a conceito de dialogia proposto por Bakhtin. O narrador, do ponto de vista dialógico, atende a uma posição de regente, ou seja, não dita as vozes das personagens, não pré-determina o que estas vão falar, mas antes orquestra-as, harmoniza o discurso polifônico das personagens dando a elas liberdade para dizerem / anteciparem, seu discurso em uma relação verdadeiramente dialógica, o que resulta em um inacabamento de seu discurso, uma vez que lhes é resguardada sempre a última palavra sobre si mesma e sobre seu mundo.

A personagem de Dostoiévski sabe que lhe cabe a última palavra e procura a qualquer custo manter para si essa última palavra, sobre si mesmo, essa palavra da sua auto-consciência, para nela não ser mais aquilo que ele é. A sua auto-consciência vive de sua inconclusibilidade, de seu caráter não-fechado e de sua insolubilidade(Bakhtin, 2002, p52).

Sabemos assim, por meio do discurso dialógico dos personagens como a construção de sua identidade vai se constituindo, ou seja, vemos como o narrador dá liberdade para que suas personagens questionem: quem sou eu?

Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?

Resposta: de si mesmo.

Então, também vou falar de mim.

(Dostoievski, 2000, p 18)

Assim, não vemos o que a personagem é, em uma visão estereotipada pelo narrador, mas sim, o modo como ela, a própria personagem toma consciência de si mesma pela profusão de vozes que vão aparecendo no interior do discurso, ou seja, conhecemos a personagem na mediada em que ela dialoga com as outras vozes do discurso, na medida em que a totalidade das vozes presentes no discurso se harmonizam e nos apresentam uma possível definição, digo possível por ainda é dado a personagem a última palavra sobre si própria e seu mundo. Como resultado temos também uma personagem sempre inacabada, ou seja inconclusa:

Eis o que seria melhor mesmo: que eu próprio acreditasse, um pouco que fosse, no que acabo de escrever. Juro-vos, meus senhores, que não creio numa só palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui! Isto é, talvez eu creia, mas, ao mesmo tempo, sem saber por quê, sinto e suspeito estar mentindo como um desalmado.

(Dostoievski, 2000, p 51)

A personagem de Dostoievski é um discurso pleno, é puro discurso, nós só a conhecemos pelo que ela fala, pelo que ela nos diz.

Dostoievski cria, assim, um narrador diferente do narrador convencional, um narrador que não mais tem a função de falar sobre a personagem, dando-lhe uma imagem concreta e previsível. A personagem tem agora a função de, num tom confessional, apresentar-se, definir-se.

Desta forma, podemos perceber que a lógica da personagem de Dostoievski se dá no momento em que ele dá auto-consciência a sua personagem, e na medida em que esta personagem é inconclusa, inacabada, indeterminada.Temos assim, uma personagem que em nenhum momento coincide consigo mesma. A posição do narrador se define assim, no exato momento em que este dá liberdade e apenas orquestra o conjunto polifônico do romance, passando a conhecer as personagens, juntamente com o leitor, no momento em que esta começa a dialogar, no momento em que a personagem toma consciência de si própria.


REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail, Problemas da Poética de Dostoiévski. Forense Universitária-3ªed – tradução e notas por Paulo Bezerra. RJ 2002.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor, Memórias do Subsolo, editora 34 – tradução, prefácio e notas por Boris Schinaiderman- SP 2000.