quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O PLURILINGUISMO NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE.

Marcos Holanda Almeida

O PLURILINGUISMO NO ROMANCE MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR, DE OSWALD DE ANDRADE.

ANÁLISE

Oswald de Andrade sempre procurou, com seu estilo paródico, satírico e arrojado, não só romper com os cânones do passado, mas também a partir de sua devoração crítica (antropofagia) criar as bases de uma nova literatura, verdadeiramente afinada com a modernidade. Seu romance invenção, Memórias Sentimentais de João Miramar, é a primeira experiência com verdadeiro êxito deste seu propósito, uma vez que intercala ou mesmo enquadra diversos gêneros literários em um nova forma poética, paródica e satírica.

O plurilingüísmo deste tipo de criação é portanto de caráter distintivo, pois nos permite perceber até que ponto chega a radicalidade da poética oswaldiana.

Vejamos um destes momentos onde o autor nos conduz, por meio de uma linguagem infantil às primeiras experiências de plurilingüísmo:

-Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não tem pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém. (1990, p 45).

Nota-se neste trecho que compõe o início das memórias de João Miramar como se cruzam parodicamente em seu pensamento pedaços da oração Ave Maria e a descrição do manequim de sua mãe.

Mais adiante, Miramar caracteriza-nos sua visão de espanto por meio de uma ironia sarcástica no capítulo 8 Fraque do Ateu ( p.47) onde confundem-se segundo a sua descrição o Fraque ( Vestimenta de Padre ) que denota todo o ambiente religioso e conservador em que ele vive, e o Ateu (diz-se daquele que não crê em Deus) aludindo assim, dialética e parodisticamente a tudo o que a sociedade lhe impunha.

João Miramar percorre assim todas as lembranças de sua infância aliadas à fragmentação e a enumeração caótica com que uma criança descobre e questiona o mundo. Esta visão infantil aproxima-se de certo primitivismo, já que ambas partem de certa ingenuidade na visão de mundo lógico, mecanizado e racional.

O plurilingüísmo descrito por Miramar possibilita-nos, portanto, uma nova interpretação da cultura brasileira por meio de sua assimilação destruidora e recriadora da cultura Européia, que visava a uma civilização desrecalcada e anti-autoritária.

Dessa forma, vemos aqui uma possível aproximação da antropofagia oswaldiana com o plurilingüísmo de Bakhtin, uma vez que ambos pressupõem a presença marcante do discurso de outrem na linguagem de outrem. Bakhtin (2002) chega a enfatizar que este recurso serviria justamente para refratar a expressão das intenções do autor. A paródia literária serviria ainda, segundo Bakhtin, para demarcar um momento de ruptura e transformação de um novo momento literário, serviria portanto como uma espécie de releitura crítica e criativa de discursos anteriores. Chegando justamente no ponto onde um possível encontro com o ideal oswaldiano é possível: A releitura crítica e criativa de discursos anteriores. A sátira de uma linguagem artificial, a paródia de uma linguagem oca e pretensiosa, como bem podemos observar no prefácio das Memórias Sentimentais de João Miramar na linguagem apresentada por Machado Penumbra.

Oswald de Andrade, por meio de seu estilo enciclopédico, acaba por registrar, ainda que fragmentariamente, toda uma gama de gêneros e estilos literários, endossando ainda mais a presença do plurilingüísmo em sua obra. Oswald vai ainda mais longe em seu plurilingüísmo quando retrata o personagem Minão da Silva, um agregado da fazenda, sem estudos, mas atraído pela literatura, que gosta de se expressar literariamente, escrevia cartas cheias de erros gramaticais, uma sátira dentro da sátira. Um discurso, portanto, plurilíngüe por excelência.

Um dos traços mais importantes deste tipo de discurso é a ruptura dos traços estilísticos que serviriam para demarcar as diversas vozes que se apresentam, assim a fala de outrem nunca está nitidamente separada do discurso do autor (Bakhtin,2002, p. 103). A radicalidade deste plurilingüísmo, é ainda maior se levarmos em consideração da técnica empregada por Oswald na composição deste romance, uma vez que o enredo tradicional não existe, pois a sucessão de seus capítulos instantes, de seus fragmentos, se faz como se fosse uma prosa cinematográfica, isto é, desenvolvida com descontinuidade cênica, criando assim uma espécie de simultaneidade dos acontecimentos. Esta tentativa de simultaneidade aliada a justaposição de textos de várias naturezas: cartas, diário, discursos, poemas, teatro, etc..., dão ao plurilingüísmo oswaldiano uma acentuada força dialógica, enfatizando ainda mais o sentido de sátira que tal tipo de discurso envolve. Enfim, a produção romanesca de Oswald parece se enquadrar perfeitamente numa das principais formulações de Bakhtin; a de que os gêneros intercalados ou enquadrados são as formas fundamentais para introduzir e organizar o plurilingüísmo no romance.

O plurilingüísmo é entendido aqui, portanto, como uma ferramenta importantíssima para a compreensão da tessitura poética oswaldiana uma vez que abre caminhos para múltiplas leituras discursivas a partir da concepção dialógica de Bakhtin.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: O plurilingüísmo no romance. São Paulo: Annablume, 2002. p.107-133.

ANDRADE, Oswald de.Memórias Sentimentais de João Miramar. - São Paulo: Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, São Paulo: Globo, 1990.

CAMPOS, Haroldo de. Uma Poética da Radicalidade, In: Poesias Reunidas – Oswald de Andrade. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1966.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

JAKSON, Kenneth David. A prosa Vanguardista na Literatura Brasileira: Oswald de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1978.


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