domingo, 17 de janeiro de 2010

JULGAMENTO SEVERO SOBRE A VIDA LITERÁRIA BRASILEIRA


Entrevista concedida por Afrânio Coutinho ao "Jornal de Letras"
(fevereiro de 1951)





Os leitores estão lembrados da celeuma causada nos nossos meios intelectuais por um artigo do sr. Afrânio Coutinho publicado na seção "Correntes Cruzadas" que êsse escritor mantém no suplemento literário do "Diário de Notícias". As reações que as palavras do sr. Afrânio Coutinho provocaram foram muitas e bastante veementes, tendo neste sentido se manifestado numerosos escritores.
O "Jornal de Letras", desejoso de esclarecer o problema levantado pela nota publicada no "Diário de Notícias", procurou o sr. Afrânio Coutinho, mantendo com ele a conversa que reproduzimos em forma de entrevista.

"O problema que coloquei - iniciou o sr. Afrânio Coutinho - é da maior relevância: é o da ética do ofício e da profissão. É o da criação de uma consciência moral completando uma consciência técnica. Problema que, sobre ser da maior importância, é extremamente delicado, não podendo ser discutido em termos de ofensa pessoal. Não são pessoas que estão em jogo. E seria uma atitude de ridículo farisaísmo qualquer indivíduo, no Brasil, atacar pessoas por defeitos que são comuns a todos nós, e de que não nos podemos isentar, porque todos somos feitos da mesma massa e participamos das mesmas deficiências".

- Contra o que sua nota se levantou? Onde estão os males por que são apontados?

- "Os males incriminados não residem nesse ou naquele indivíduo, estão no tecido social, nos "mores", na trama de hábitos correntes e resíduos acumulados, nos padrões e dramas que regulam a vida. Não é uma questão de pessoas, mas de sistema. Se há lugar para um julgamento eu não só fiz como reafirmo e reitero sem tirar uma palavra, ele se dirige não às pessoas mas ao agrupamento, não visa a esse ou aquele homem de letras, mas à "vida literária", essa feira de vaidades e fuxicos. Quanto a isso, nada há que retirar, e as palavras que pronunciei estão de pé. Ou mudamos de orientação ou jamais teremos Literatura no Brasil, uma literatura amadurecida, que se imponha pela qualidade, pelo teor elevado, pela originalidade. Por ora, em virtude desse e de outros defeitos, nossa produção literária, tão escassa e tão minúscula, só tem importância secundária, unicamente para nós mesmos, tal como ocorre com a da Austrália e a de outros países sub-coloniais. Não chegamos ao plano do universal, e não temos absolutamente razão de nos queixar da língua, pois os russos e os escandinavos, de idioma tão impenetrável quanto o nosso, quebraram as fronteiras e invadiram o mundo no momento em que se fizeram literariamente maiores".

- A seu ver o que tem mais importância no Brasil: a Literatura ou a vida literária?

- "Para nós importa mais a "vida literária" do que a Literatura. É ela que nos dá prazer, que prende os intelectuais, que lhes desgasta as energias, o talento, a imaginação. É para ela, para a vida em torno da Literatura nos cafés, nas igrejinhas, nas confrarias - que vai a sua maior atenção. É aí que muitas gloríolas fáceis se constroem ou que muito cartaz se dissolve, à custa dos fogos cruzados de elogios desarrazoados ou de toda a sorte de processos de denegação, sabotagem, campanhas de silêncio, futricação, intrigas, deslealdades, piadas, epigramas, em uma palavra, da politiquice literária a qual, e somente a qual, chamei de molecagem engravatada. Se toda essa energia fosse empregada num sentido sadio e construtivo, no estudo, na meditação e na criação literária, seríamos algo mais ricos literariamente. Creio que isso é assunto por demais conhecido, assunto pacífico e incontroverso para exigir maior comentário. Lembra-me um conselho que recebi certa feita de uma notável figura de nossos dias: "Faça Literatura, mas não faça vida literária".

Afrânio Coutinho prosseguiu:

"Há no âmago do problema uma questão de teoria literária e crítica: a da primazia da obra ou a da maior importância do artista, e, portanto, da vida por ele vivida. Foi o romantismo que exaltou o indivíduo, o autor, os valores individuais, na criação da obra e na sua apreciação. Decorre daí toda uma atitude crítica diferente, a obra servindo apenas como veículo para atingir-se a alma do autor, e a biografia passando ao primeiro plano do trabalho crítico. Esse exagero romântico do indivíduo teve como conseqüência, no plano literário, a super-valorização da vida que o artista vivia e os artistas procuravam viver uma vida que se caracterizasse pela originalidade, pela desobediência ao comum, pela ruptura com a moral corrente, pela boêmia. Para mudar de rumos, seria necessário renunciar à teoria de que a vida literária é mais importante do que a Literatura, do que a obra literária propriamente".

- Não acha que no Brasil estamos dando demasiada importância ao escritor, em detrimento de sua obra?

- "No Brasil, é a teoria vigente, como se pode verificar nas nossas histórias literárias e estudos críticos: há um predomínio do escritor e a vida que ele viveu importa mais que a obra por êle produzida. Nossas histórias literárias, na maioria dos casos, perdem-se em detalhes sobre a vida dos escritores, e muito pouco ou nada oferecem de crítica das obras".

- Que vantagem ou desvantagem a boêmia tem trazido à literatura nacional?

- "A boêmia, o montparnasismo, só nos tem trazido prejuízo. Que resta hoje de um Paula Ney, que encarnou o espírito da boêmia literária, e do qual sabemos haver sido uma fascinante personalidade artística, sem que tivesse ficado uma amostra à altura de gênio tão fulgurante?

Todavia, o problema não é só nosso, nem é original do Brasil. É primeiramente ligado à própria constituição da personalidade do artista, cuja finura de sensibilidade, cuja extrema susceptibilidade, fazem seu temperamento quase confinar com a morbidez. Henry James foi quem melhor o situou em termos de ficção em seus retratos de artistas e escritores. Mas isso admite-se no artista real, de gênio, nas figuras de exceção, não como norma de toda a família das aves de vôo curto. Por outro lado, é sobretudo um problema moderno, ligado à ascensão do indivíduo, do Renascimento em diante. E é muito um problema decorrente da influência francesa, pois é na França que a Literatura mais é sentida como força social, dotada na realidade de uma função e de um papel na sociedade, através dos salões, das academias e de toda uma rede de elementos de atuação e irradiação que a coloca no meio da vida social. Há razão em falar-se, a propósito de França, na Literatura como sorriso da sociedade. Duplamente, pois, a influência francesa se exerce no particular: pelo montparnasismo e pelo caráter social de literatura, isto é, a Literatura como instrumento de brilhantismo, de embelezamento, de ação social e política.

No nosso caso, porém, há uma grande diferença. Em toda a parte, existem essas formas inferiores de vida ligadas à Literatura. A "vida literária" não consegue, porém, embotar, esterilizar desmoralizar, cretinizar, acafajestar a Literatura. Por outras palavras, as normas e padrões dominantes não são fornecidos por ela. O que domina não é o espírito da "vida literária", mas a fidelidade à arte, à Literatura. Essas é que importam acima de tudo; em vez da luta pela administração de gloríolas, pela construção de cartazes efêmeros e de famas fugazes; em vez das rivalidades mesquinhas, das invejas e despeitos recalcados, de toda aquela trama tão conhecida que forma a nossa "comédia literária". Entre nós, ao contrário, subverteram-se os planos, e é esta que dá a lei, que forma o caráter geral, que modela a fisionomia da Literatura."

- Sua nota tem caráter de julgamento?

- "Exatamente. É um julgamento severo sobre a vida literária brasileira o que pronuncio. Não sobre a Literatura, nem muito menos sobre os escritores. Se há o "beco", mesquinho, e sujo, a que se refere com razão Carlos Drummond de Andrade, e contra o qual ouso levantar a voz num grito de alerta e condenação, vivendo à margem dele algumas figuras exemplares tentam construir algo de duradouro, segundo princípios os mais puros. Não importa que muitos deles hajam sido ocasionalmente envolvidos pelo beco, ou tenham contemporizado com seu espírito no afã explicável de não ficarem isolados, ou porque não são possuídos da bravura característica do solitário.

De modo que, fora do beco, resistindo-lhe, algumas figuras isoladas construíram uma pequena amostra do que poderia ser feito se encarássemos a Literatura com gravidade, como coisa séria que é. Honra lhes seja feita. Pois o que eles realizaram, nas condições adversas a todo trabalho do espírito, como as que vigoram em nosso país, sobretudo no passado, é algo de que nos devemos orgulhar.

Mas esse ufanismo não deve desviar nossa atenção do problema grave que é o do beco literário brasileiro. Contra ele, seu espírito, seu sistema, seus métodos, suas táticas, suas normas, todos os que têm responsabilidade se devem levantar para um combate aberto, corajoso, franco. Esse combate é o que venho fazendo desde que fui tendo consciência dele, desde talvez que comecei a escrever e a penetrar na vida intelectual. Tenho trabalhos publicados na província e na imprensa da metrópole que mostram como sustento os mesmos pontos de vista, e com a mesma contundência, desde quinze anos atrás. Chegou a hora de se tomar conhecimento do que venho afirmando. Não se imagina como estou contente por ter alcançado o objetivo, que era abalar, agitar um problema sério, chamar para ele as atenções. Mesmo com o risco de irritar, porém com a consciência tranqüila de estar com a verdade.

Para isso, sobra-me autoridade, devo dizer sem jactância. É que o faço como crítico, exclusivamente por amor da Literatura, no nobre intuito de concorrer para melhorá-la. Pois essa vida literária não pode deixar de refletir-se na produção. Mudando de atitude frente ao fenômeno literário, de conceito da Literatura, da maneira de exercê-la, automaticamente a produção melhorará, porque mais puras ficarão as fontes da criatividade.

Dizia que tenho autoridade para isso. Digo-o e repito. Vim para a Literatura por vocação, livre e espontaneamente, sempre como um isolado, sem compromissos, nem ligações com capelas literárias e assim continuo e continuarei. Sou uma pessoa indiferente a tudo que não seja Literatura. Abandonei pela Literatura uma carreira na Medicina. Desprezei oportunidades ótimas de entrar na administração pública e na política, por fidelidade rigorosa à Literatura; possuo disso testemunhas. E para que? Para vir disputar uma cátedra de Literatura, num concurso duríssimo, do qual saí vitorioso, em provas públicas de que me orgulho e que receberam a consagração de uma banca da mais alta categoria moral e intelectual. Preferi a porta estreita da disputa arriscada a todas as facilidades que estavam à minha disposição. E isso culminando uma vida de vinte anos de estudo da Literatura e de serviço às letras, serviço que continuarei a prestar, com as mesmas idéias de sempre e a mesma coragem e independência no discutir os mais sérios problemas, na cátedra, na imprensa no livro, na tribuna. Do contrário, não honraria a cátedra ilustre e autorizada de que hoje sou ocupante no Colégio Pedro II."

2 comentários:

Unknown disse...

DILETO MARCOS:
ENCONTREI O ENDEREÇO DO TEU BLOG NUMA COMUNIDADE DO ORKUT.
SURPREENDENTE. NÃO SÓ DEGUSTEI DOS TESTOS COMO TAMBÉM COPIEI E TIREI CÓPIA PARA O ACERVO DA MINHA BIBLIOTECA. JÁ ESTOU SEGUINDO DE HOJE EM DIANTE.
TENHO TAMBÉM UM BLOG LITERÁRIO E CONVIDO-O PARA UMA PASSADA POR LÁ:
BLOG - RETALHOS DO MODERNISMO - http://literalmeida.blogspot.com
GRANDE ABRAÇO E:

"ESTEJA E SEJA E FIQUE FELIZ!"

LUIZ DE ALMEIDA & BLOG RETALHOS DO MODERNISMO

Marcos Holanda Almeida disse...

Prezado Luiz,
Fico feliz que tenha aproveitado o material que ora tenho postado no blog. Aprecio muito seu interesse e também a sua iniciativa quanto a pesquisa e o resgate de valores do Modernismo. Andei visitando seu blog e vi que tem muita coisa produtiva lá. Continuemos com essa nossa empresa tão dificil e ao mesmo tempo tão gratificante, que é justamente o resgate de valores via estudos literários. Cabe a nós, como bem disse Alfredo Bosi, compreender resistindo e resistir compreendendo.
Um abraço cordial.
Marcos Holanda