domingo, 17 de janeiro de 2010

A CRÍTICA E OS RODAPÉS

A CRÍTICA E OS RODAPÉS


COUTINHO, Afrânio. A Crítica e os Rodapés.Rio de Janeiro: Simões Editora, 1969, pp. 19-23

Haverá porventura hábito mais grotesco do que este, tão comum entre nossos críticos, de inaugurarem os seus rodapés com uma introdução em que, pretendendo dar a sua posição, não vão além de uma série de considerações mais ou menos ocas e de algumas barretadas à platéia? Onde as tomadas de posição, as afirmações doutrinárias, as classificações dos problemas? Aliás, não é este o costume apenas que é preciso argüir, tratando-se do problema da crítica no Brasil. É a própria instituição do rodapé, que é condenável por todos os aspectos como um dos responsáveis pelo atraso ou, por que não dizer, pela inexistência da crítica literária entre nós.
O rodapé envolve o indivíduo que o enche de uma auréola de falso prestígio, geralmente mais condicionado pelo jornal onde aparece, do que pelo valor intrínseco do mesmo. Várias razões militam contra o rodapé. Em primeiro lugar, a questão do tempo. É materialmente impossível, nas atuais condições de publicidade, que um homem se mantenha em dia com o movimento editorial, por dever ser uma espécie de termômetro do mesmo, conservando, por outro lado, o seu espírito ao nível da cultura da época, para que possa ser um intérprete seguro e um julgador imparcial. A crítica de contemporâneos já por si implica uma série de condições de ordem moral – equilíbrio interior, pureza de intenções, fidelidade a certos princípios, honestidade de meios – sem as quais o crítico não passa de um fraseador vulgar. Tendo, portanto, diante de si esta imensa dificuldade, o crítico do rodapé, por outro lado, não poderá fugir ao dever de aperfeiçoar constantemente o seu preparo básico, o que só consegue com a leitura e o estudo ininterruptos, e ainda por cima, terá de enfrentar os montes de obras que lhe batem à porta a cada correio, só o selecionamento das quais lhe tomará boa parte do tempo. Vê-se, pois, que é tarefa sobre-humana ler sistematicamente o que se publica, afim de dar, cada semana, uma súmula do movimento geral ou um estudo sucinto sobre um livro ou autor. Não poderá fugir da reportagem, da embromação, ou do lero-lero para encher papel, em torno ou a propósito do livro, muitas vezes nada tendo que ver com ele. É geralmente, o espetáculo que oferecem os críticos de rodapé. Mas o rodapé entre nós ainda é culpado de outros pecados. Raros serão os que resistam à tentação do pedantismo, do dogmatismo, da compenetração, raros os que não se deixam desequilibrar. A crítica de rodapé estraga a melhor vocação crítica. Não vou a ponto de pretender que se acabem os rodapés. O que me parece aconselhável é que não se lhes dê a importância exagerada que tem no Brasil. Compenetremo-nos de que já passou o tempo em que o velho Sainte-Beuve podia semanalmente produzir os seus maravilhosos folhetins, coisa aliás que lhe exigia, como se sabe, uma dedicação exclusiva e absorvente, sete horas de leituras diárias, durante sete dias da semana. E mais era Sainte-Beuve... Estas e outras reflexões me tem vindo à mente ao observar certos hábitos da vida literária americana. Dentre os fatos que me chamaram até hoje a atenção, avulta um que me parece dos mais auspiciosos: a existência de uma sólida crítica literária que, a meu ver, é o mais elevado e melhor aspecto desta rica literatura. Este meu ponto de vista, aliás, tem tido a aprovação de muitos escritores, alguns deles grandes críticos, aos quais o tenho referido. Realizando esse magnífico trabalho, original e profundo, os críticos americanos deste século compreendem perfeitamente aquela palavra de Paul Elmer More, para o qual não poderia haver literatura americana antes de existir a crítica americana. Tese aplicável inteiramente ao Brasil. Já se podem considerar definitivas as conquistas da crítica americana, não só no que diz respeito a um corpo de doutrinas e padrões, como às obras-mestras que tem produzido. Com os elementos de que disponho, espero poder algum dia comentar mais de espaço, entre nós, alguns dos seus feitios mais interessantes, lamentado hoje apenas o fato de que ela se reduza, aos nossos olhos, ao fossilíssimo Menken, quando, sem abandonar os antigos, aí está viva uma equipe de primeira categoria de críticos, Krutch, Burke, Blackmur, Tate, Ransom, Kazin, Barzum, Trilling, Mathiessen, Hicks, Rahv, Philips, Schuster, e muitos outros, sem falar nos dois mestres, Eliot e o velho Richards, iniciadores de uma ala do movimento moderno da crítica anglo-americana.
Já atingiu altitude tal esse movimento, que já hoje é impossível a um crítico ficar realmente à altura do seu mister sem se assenhorar das idéias e métodos da moderna crítica de língua inglesa. Do contrário, ficará como a maioria dos nossos: em pleno impressionismo crítico. Pior do que isto: em pleno comentarismo crítico. Era a que desejava chegar, pois me parece que esse estado resulta do hábito de reduzir a crítica àquela que se faz nos rodapés. O que me afigura inadiável entre nós, é a destruição do mito do rodapé. Enquanto considerarmos o rodapé a última palavra em crítica, jamais teremos crítica literária, e ipso facto literatura. Os rodapés não merecem o respeito e a veneração de que são cercados, o prestígio que se lhes espreita. Não devem ser vistos senão como meros registros de livros, sem nenhum valor de julgamento, nem para o bem nem para o mal. Para que se sinta o vazio dos rodapés, basta que procuremos neles o critério que os norteia, o padrão de valores, suas diretivas e normas de interpretação. No Brasil, dificilmente encontraremos mais de m rodapé que possa expor esse corpo doutrinário, e que não se resuma no critério do "gostei" ou "não gostei". Para que, portanto, dar-lhes importância, sabendo que são feitos sobre a perna? Lembremo-nos de que seus autores não se dedicam somente a eles, exercendo ao contrário meia dúzia de atividades, e que, portanto, não tem tempo para estudar e meditá-los.
A propósito disto é que desejo citar o exemplo da vida literária americana. Ela faz uma distinção bem nítida entre crítica e review de livros, entre crítica e reportagem, crônica, registro. Esta distinção é que seria necessário introduzir no Brasil.
Um rodapé não é crítica, mas simples registro ou revista de livros. Não existe, geralmente, o hábito do rodapé na América. Mas as seções de registro de livros, de todos os jornais e revistas, não são consideradas seções de crítica, mas de review, e os seus autores não são tidos como críticos. Além disso, nenhum grande crítico americano assina uma seção permanente, diária, semanal ou mesmo mensal de crítica. Um dos mais jovens dizia-me há pouco ser-lhe impossível fazê-lo, e citava-me o exemplo de um artigo de dez páginas datilografadas que escrevera sobre Henry James, para o número comemorativo de certa revista, o qual lhe levara dois meses de trabalho, entre pesquisa e redação. Com tal método, como se dedicar a uma seção periódica de crítica? Estas, os verdadeiros críticos deixam de bom grado para os repórteres de livros, os Clifton Fadman, John Chamberlain e todos os outros que enchem os suplementos literários dos jornais com as suas notícias de livros, mais ou menos encomendadas e controladas pelas casas editoras. Não quer dizer que um bom crítico esteja inibido de publicar um artigo de crítica em um periódico qualquer. E o fazem com certeza, mas ocasionalmente, sem a obrigação regular de uma seção permanente. Por outro lado, um reviewer também não estará na impossibilidade de fazer um trabalho crítico. Alguns há que são mesmo dotados de certos recursos críticos, e se o quiserem poderão fazer crítica, se se dedicarem ao estudo. Não, porém, nas suas seções de registro. E o que se dá com eles é que ninguém os leva a sério, o review já os tendo desmoralizado aos olhos dos homens de letras de responsabilidade, e criado neles um hábito de acanalhação, de só encarar a literatura com um espírito de facilidade e mercantilismo.
A grande crítica, inclusive de contemporâneos, se exerce nos livros, nas boas revistas literárias, em estudos sérios, amplos, assentados. É desta maneira que está sendo construída a crítica americana. Confundindo crítica com rodapé – e a prova disto é que os seus autores os publicam depois em livro tais como apareceram nos jornais, sem nenhuma modificação, como obras definitivas de crítica - , teremos sempre uma crítica aleatória, inconsistente, sem padrões nem guias, condicionada à impressão pessoal, às flutuações dos motivos e objetivos pessoais do autor, ao seu caráter, às circunstâncias do ambiente em que ele se move, às imposições de natureza extraliterária, política ou social.
É o nosso triste caso.
Nova York, 13-6-1943

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