domingo, 17 de janeiro de 2010

CRÍTICA DE MIM MESMO - AFRÂNIO COUTINHO



CRÍTICA DE MIM MESMO

AFRÂNIO COUTINHO



Pediram-me os organizadores desta Miscelânea, - homenagem que muito me lisonjeia e sacode o meu orgulho de intelectual, que, embora, polêmico e afirmativo, jamais ultrapassou a barreira da modéstia, - pediram-me na sua generosidade que dissesse algumas palavras sobre pontos que considero relevantes em minha suposta contribuição à crítica, teoria e historiografia literárias brasileiras. Sem me imaginar nenhum Benedetto Croce, que fez a "crítica di me stesso", vou tentar esboçar algo em relação a assuntos postos em evidência.

I - NOVA CRÍTICA

De quando em vez, surge pela pena de confrades menos avisados que eu fui o divulgador entre nós do new criticism norte-americano, que eu teria trazido em minha bagagem ao regressar dos Estados Unidos, em 1947. Lamento ter que voltar a colocar nos justos termos a questão, mais de uma vez rebatida por mim aquela balela. É que não se lê bem entre nós o que os outros escrevem. No Prefácio à segunda edição de A Literatura no Brasil (Volume Primeiro), o assunto foi amplamente esclarecido, de modo a não deixar dúvidas.

O que trouxe na minha bagagem, depois de cinco anos de estudos e contatos intelectuais, não foi o new criticism apenas, mas toda uma global doutrinação pela renovação da crítica literária, que, no Brasil, estava dominada pelo impressionismo, velho e sovado, e, pior ainda, transformado ou degenerado em simples jornalismo, ou achismo, do gostei ou não gostei, praticado à larga pelos donos de rodapés de crítica literária. Para minha satisfação íntima, com a minha campanha decidida e intimorata, consegui que aquele tipo de atividade fosse desacreditado e mesmo praticamente terminado. Infelizmente, essas coisas passam despercebidas até mesmo aos que procuram historiar a nossa cultura. Nós somos homens de poucas leituras e breves análises, daí muita incompreensão.

O que tentei fazer, e, ai de mim, talvez nem por todos entendido, foi a renovação da crítica. Daí ter denominado a tendência de "nova crítica", a qual não se reduzia ao new criticism anglo-americano. As duas não são a mesma coisa. A primeira é uma tendência globalizante; engloba métodos e doutrinas de várias origens. O mesmo ocorreu, na década de 60, na França, onde a renovação que recebeu o nome de nouvelle critique (igualzinho ao meu) e é independente e diferente da norte-americana, embora tenha pontos comuns, exatamente como ocorreu entre nós.

Desde o meu primeiro artigo na imprensa do Rio de Janeiro, em 1948, intitulado "A crítica como criação", incluído no volume Correntes Cruzadas (1953), bem como no prefácio deste livro, advogava a renovação crítica, apontando e definindo as diversas correntes e tendências internacionais que trabalhavam nessa direção: o new criticism, o aristotelismo de Chicago, o formalismo eslavo, a estilologia teuto-suíça e espanhola, a escola inglesa, etc., mostrando como todos caminhavam na mesma direção renovadora. Depois surgiram outras escolas.

Jamais escondi a minha maior afinidade com as teorias do formalismo eslavo, e alguns dos pontos mais salientes de minha doutrinação eram de origem formalista, com o qual me familiarizei ainda em Nova York, através de René Wellek e dos trabalhos, raros então, divulgados no Ocidente. Algumas de minhas teses, como o "retorno ao texto", à obra, em vez das circunstâncias que a cerca, é de origem formalista. Essas e outras teses estão explicitadas em inúmeras passagens de meus livros, especialmente na "Introdução" e no "Prefácio" à segunda edição de A Literatura no Brasil. Quem ler com atenção e boa vontade esses textos, e outros em livros como Da Crítica e da Nova Crítica, terá disso plena confirmação.

Jamais quis ser nem fui um divulgador do new criticism, que nunca pratiquei. Essa corrente entrou com alguns postulados fundamentais consonantes com o teor geral de minha pregaçãoglobal. Ela foi apenas um dos caminhos do mapa da mina que propus.

Quem observa o que se passa atualmente na crítica brasileira, transferida dos rodapés de jornal para as teses universitárias e livros de jovens críticos, compreende perfeitamente a mudança radical aqui operada, qualquer que seja a orientação metodológica e doutrinária seguida. Existe uma nova crítica, divorciada de velha prática impressionista ou achista. Há seriedade, anti-improvisação, preocupação científica, entre os jovens críticos. Embora não se aceite o historicismo, o determinismo, o biografismo, respeita-se a história, a influência do meio, o papel do autor e do público, da língua. Mas o essencial no ato crítico é o estudo da obra, em que pesa a variedade de abordagens. E isso é nova crítica. (1979)

II - CRÍTICA VELHA E NOVA

Quem estudar no futuro a evolução da crítica literária entre nós, neste século, não poderá deixar de observar a diferença na conceituação e no seu exercício entre os anos anteriores à década de 50 e os que lhe sucederam. O que dominava no particular até aqueles anos era um misto de sociologismo e impressionismo, a partir do que fizeram os grandes do século XIX, um Sílvio Romero e um Araripe Júnior, ou um José Veríssimo sem a profundidade destes, ou então um filologismo que reduzia a obra literária a mero pretexto para divagações gramaticais, como um Osório Duque Estrada, a quem o valor literário residia no bom ou mau uso da língua. O sociologismo não morreu, transformou-se nas baboseiras marxistas, a partir de superficiais leituras de Lukacs e, posteriormente, nas especulações de Goldmann. Virou moda para demonstração de inteligência avançada e pra frente, indiferente à investigação real, à meditação profunda sobre a natureza do fenômeno literário e ao dever crítico.

No começo da década de 50, começou no Brasil uma polêmica sobre esses problemas, fato inédito entre nós. De fato, não se encontra antes qualquer tipo de especulação sobre o fato literário em si e sobre a natureza do processo crítico. Esse debate teve o condão de fazer com que os velhos cultores da crítica literária caíssem em si e passassem a ver que era imperioso saber em que consistia o ato crítico e qual, afinal de contas, o seu objetivo. Não era um mero passatempo gratuito, executado segundo o mais superficial espírito jornalístico e na base da improvisação irresponsável, sem preparo prévio, sem um arcabouço teórico, sem normas técnicas, tudo o que caracteriza qualquer atividade intelectual. A crítica tem que ser vista como um esforço da inteligência, segundo regras de raciocínio lógico, tal como a filosofia, o que nem era sentido nem considerado entre nós, passatempo de beletristas que, não podendo produzir poesia ou ficção, se davam ao seu exercício sem preparo, sem cultura. Eram, em geral, frustrados da criação literária que se atiravam nos rodapés dos jornais com todos os ressentimentos de suas frustrações, derramando-os em cima dos romancistas e poetas.

Isso mudou a partir da polêmica da década de 50, desencadeada ante o espanto dos donos da literatura, encastelados nos suplementos e editoras. Reagiram ao primeiro momento. Mas, aos poucos, compreenderam que havia algo novo e sério, na campanha, mantida, com pertinácia e convicção, contra cartazes de papelão e igrejinhas de portas de livraria. Disse Guimarães Rosa certa feita que era a moeda boa expulsando a má do mercado, até então dominado pela falsa ciência dos aproveitadores da vida literária.

Foi assim que, aos poucos, desabaram os bastiões de defesa dos críticos enfezadinhos, cabeçudos, sem nenhuma base doutrinária, com o prestígio dos jornais em que pontificavam dos seus altos coturnos, mas vazios de substância.

A partir dessa derrota, a crítica tomou outro rumo. Os rodapés de jornal perderam a importância. A crítica de rodapé passou a ser vista na sua verdadeira condição de simples jornalismo de anúncio ou resenha ou registro de livros para a divulgação dirigida ao grande público ledor. A crítica saiu dos jornais - embora ainda haja alguns teimosos que insistem em não perder as suas colunas, mascarando a pobreza com a empáfia, cerrando de cima graças à posição dos jornais importantes.

Mas, quem encara atualmente o problema, vê claro que a crítica tem outra função. Ela está agora nas revistas, no ensino literário. Tornou-se uma atividade técnica, que se aprende na universidade, dada a sua complexidade, dependendo do rigor científico com que deve ser enfrentada.

Essa foi a mudança radical que se operou na crítica na passagem da década de 50. Antes e depois ela é diferente. Ainda agora estamos vivendo o resultado do trabalho realizado naquele momento. A crítica é outra bem diversa do que se fazia na primeira metade do século. Isso é que não compreendem os criticóides que ainda hoje confundem crítica com jornalismo de livros. (1982)

III - A CRÍTICA NÃO É GÊNERO LITERÁRIO

É uma questão sempre atual a da natureza da crítica, máxime tendo em vista certos pronunciamentos que a definem como um gênero literário, colocando-a na mesma categoria do romance, do lirismo, ou do drama. Vale a pena, pois, que se reiterem noções ao parecer comezinhas ou elementares, que nem sempre se apresentam claras.

Para a poética neoclássica, os gêneros literários eram todas as manifestações da atividade intelectual; tinham, portanto, um sentido amplo, e sua classificação era exaustiva, incluindo assim os gêneros propriamente poéticos - o lirismo, o drama, a epopéia - como o jornalismo, a história, a filosofia. Tudo era gênero literário, mesmo que não fosse literatura.

Naturalmente tal modo de encarar os gêneros constituía uma decorrência de uma concepção lata de literatura, concepção apoética, segundo a qual não era apenas a arte da palavra, mas todas as manifestações do espírito por intermédio da palavra. Até bula de remédio seria literatura...e a bibliografia de um assunto é a "literatura existente sobre o mesmo".

Estabeleçamos certas premissas conceituais. A literatura é uma arte, a arte da palavra. Mas nem tudo o que utiliza a palavra é literatura. Como toda arte, a literatura origina-se na imaginação criadora, e tem por objetivo despertar um estado emocional, cuja natureza tem sido motivo de muita indagação da filosofia estética. De qualquer modo, é um estado de prazer estético, indefinível, quase de felicidade, que não se identifica com nenhum outro, e que tampouco resulta de qualquer outra fonte.

Antes de mais nada, a literatura não visa ao conhecimento, à informação, ao ensinamento. A despeito da velha fórmula de Horácio, "docere cum delectare", pretender para a literatura uma finalidade didática, sob uma forma agradável, ensinar deleitando, e apesar de muitas obras que tiveram uma intenção normativa-religiosa, moral ou revolucionária, não é este o aspecto que lhe granjeia o aplauso perene dos públicos de todas as épocas. Não é por aí que as obras literárias se tornam eternas na admiração e no prazer dos leitores. Mas sim pelos elementos estético-literários de sua composição, responsáveis pelo seu valor especificamente literário e pelo prazer estético advindo de sua leitura ou apreciação.

A esse elemento intrínseco, de naturezaa literária, é que se deve podermos apreciar e amar uma obra de outros tempos e lugares, de "circunstância" histórica diversa da nossa. É que nós adotamos em face delas aquele "suspension of disbelief" a que se referiu T.S.Eliot, graças ao qual ficamos aptos a sentir esteticamente uma obra com a qual estejamos desidentificados em virtude de sua política, filosofia, moral, ou religião. É o que faz com que um protestante aprecie a "Divina Comédia" sem aceitar a filosofia tomista, católica, implícita na sua concepção. É o que nos faz apreciar as epopéias homéricas, a despeito de nada termos com os costumes e a religião dos gregos, do mesmo modo que nos apaixonamos pelo "Don Quixote", sem nos sentirmos presos as concepções sociais do mundo em que surgiu e a que visava satirizar.

Não sendo um meio de conhecimento ou de informação a literatura expeliu de seu âmbito o jornalismo, a filosofia, a história. E isso o fez a duras penas, depois que a ciência estética, a partir do século XVIII se desenvolveu, passando pela polêmica romântica em torno aos gêneros literários e as restrições de Croce. Em nosso tempo, a poética contemporânea, não aceitando muito embora a negação croceana, tampouco se deixou prender à tradição neoclássica. Para os modernos teóricos, a concepção sobre os gêneros repele o sentido lato, amplo, reduzindo os gêneros literários àqueles estritamente de caráter literário, específico, isto é, os gêneros narrativos da epopéia e da ficção, os gêneros dramáticos, líricos e ensaísticos, fechando a porta a tudo o mais que não seja produto da imaginação e vise a objetivos de conhecimento, investigação, informação, análise.

É o caso da crítica, parenta da filosofia e da ciência, pela sua natureza analítica, interpretativa, discursiva. Atividade reflexiva, a matéria-prima de sua atuação é a literatura, o fenômeno literário, que se expressam pelos gêneros literários. Por isso que ela incide sua mirada indagadora sobre os gêneros, deduziu-se abusivamente que ela é também um gênero. Como se a ciência que estuda as flores com elas se confundisse.

A crítica literária tem por meta os gêneros, mas não é um deles. Ela os estuda, sem se confundir com eles. Ela é uma atividade reflexiva, intelectual, da natureza da ciência, adotando um método rigoroso, tanto quanto o das ciências, mas de acordo com a sua própria natureza, um método específico para um objeto específico, o literário, a obra de arte da palavra. Não é uma atividade imaginativa, embora consinta no auxílio da imaginação; é uma atividade científica, sem usar os métodos das outras ciências (biológicas, físicas, naturais), nem se valer das suas leis ou conclusões; não é a filosofia mas recorre ao raciocínio lógico-formal, para refletir sobre os fenômenos da arte da palavra.

Assim entendida, a crítica literária possui um campo de atuação que lhe é próprio e deve caminhar para o estabelecimento de técnicas de pesquisa e análise, e para métodos de interpretação e julgamento, que lhe são específicos e também intransferíveis.

Não é em conclusão, um gênero literário, mas um conjunto de métodos e técnicas justamente de abordagem dos gêneros literários. E o que tem procurado ser no passado variando de métodos de acordo com as necessidades, e em função da literatura que tenha que analisar e julgar. Sua história é uma longa luta, um grande esforço para penetrar e compreender o fenômeno literário. Com atitude científica, observando o fato literário que tenha à mão - como Aristóteles da observação da literatura grega retirou a sua Poética - indutivamente, a crítica literária caminha cada vez mais para alcançar uma autonomia e uma segurança, apanágios da verdadeira ciência. (1968)

IV - CRÍTICA E RESENHA

A fórmula veio da França do século XIX, cujo modelo maior foi o grande Sainte-Beuve. A crítica consistia num elaborado artigo semanal, estampado nos rodapés ou folhetins dos jornais, a propósito dos livros publicados no momento. Aquele mestre francês trabalhava uma semana preparando seus artigos, que, pelo valor, constituíram verdadeira história literária da França, especialmente depois que foram reunidos em ordem cronológica por um dedicado editor. Daí por diante uma série de escritores repetiram a fórmula - Anatole France, Émile Faguet, Edmond Jaloux, André Rousseau, e numerosos outros.

A fórmula, como muita coisa mais, passou para o Brasil. E apareceram os José Veríssimo, Humberto de Campos, Medeiros e Albuquerque, Sérgio Milliet, e outros que republicaram em livro as suas produções no gênero.

Era evidente a superficialidade dos trabalhos, escritos em cima da perna, ao sabor das circunstâncias da vida literária e das amizades dos autores. Com raras exceções, como a de um Tristão de Ataíde, que emprestava aos estudos o caráter sério e objetivo de tudo o que fazia.

Mas, a maioria não passava do nível do achismo, do achei ou não achei bom, do gostei-não-gostei. Jovens iniciantes nas letras, ou idosos opinantes convencidos da sua verdade, não aprofundavam as leituras, nem mesmo tinham tempo, entre os seus afazeres normais ou rotineiros, para estudar os livros e apenas exerciam o direito, que adquiriram por qualquer motivo, - prestígio ou amizade com o dono de um jornal, - e se atiravam à liça exercendo catedraticamente a censura literária, condenando uns e elevando outros. Jamais eram trabalhos isentos e objetivos. Conquistavam fama de inteligentes e sabedores, sem que ninguém lhes houvesse presenciado os estudos e se montavam num rodapé de um grande jornal dando as cartas. Eram ferrenhos na distribuição do castigo e da condenação, com a férula sempre erguida e o dedo em riste. Ninguém podia com eles, ninguém lhes escapava. Metidos a gênios, só porque todos lhes tinham medo, não passavam de geniolosos, como diria Mário de Andrade.

Mas isto acabou. Ainda restam um ou outro que praticam esse ofício, simulacro de crítica, que não passava de resenha, nem sempre bem feita.

O jornal moderno, trepidante e fatual, só se interessa pela notícia ou pelo comentário sobre a atualidade. A literatura, e conseqüentemente a crítica, foram afastadas ou reduzidas a noticiário sobre livros, no intuito de atingir o leitor, o público.

E assim aqueles vastos e massudos rodapés foram fechados e desprezados pelo leitor. E a velha crítica de jornal passou a ser a resenha, pequena e despretensiosa nota, induzindo o interessado a adquirir o livro de seu interesse, que é assim promovido.

A crítica verdadeira, análise e julgamento das obras literárias do presente e do passado, mudou de local, transferindo-se para as revistas especializadas e profundas ou para as cátedras como objeto de ensino e interpretação. Só por teimosia e casmurrice de alguns beletristas enfezados é que ainda perduram alguns rodapés daquela pseudocrítica até bem pouco tempo exercida por alguns remanescentes. Ninguém, porém, leva a sério, porque todos sabem da superficialidade com que são tratados os livros que comentam, em geral perpassados por cima, aqui e ali uma ou outra página a esmo, para dar a impressão de que leram o livro, coisa que não se pode mais fazer, na vida agitada dos nossos dias, como fazia o velho Saint-Beuve no século passado.

O que o jornal moderno permite é a resenha, anúncio ligeiramente comentado dos livros, por uma pessoa com maiores dotes de inteligência e informação do que o leitor comum. E isso não é crítica, mas apenas prática jornalística, aplicada à literatura, e praticada por alguém mais apto para a leitura e maior capacidade de percepção literária. (1983)

V - QUE É A CRÍTICA

Ao afirmar que resenha não é crítica, mas apenas a aplicação de sabedoria crítica apreendida pela cultura e pela leitura dos grandes textos da história da crítica, surge de logo a pergunta sobre o que é então a crítica literária.

Sente-se bem a diferença ao observar o que acontece no mundo anglo-saxônico. Ninguém chamará de crítica um artigo de jornal tratando dos livros de publicação no momento. Isto é review, bookreview, e a atividade book-reviewing. O reviewer é um escritor encarregado de resenhar os livros de publicação recente. Nos grandes jornais essa tarefa é exercida sob forma de rodízio, vários escritores revezando-se na tarefa, cada qual escolhido pela sua preferência quanto aos gêneros. Há uns que têm mais gosto pela ficção, outros pela poesia, outros pelos livros de história, política, pensamento em geral. Há uma verdadeira especialização, e os encarregados dos suplementos ou das páginas de revistas já sabem das tendências dos colaboradores ao fazer a distribuição dos encargos.

Ninguém se arvora a crítico ao escrever os reviews. Limitam-se a meros comentários superficiais, resultado de leitura ligeira, sem maior profundidade. São despretensiosos, humildes, e é comum que os autores escrevam cartas contestando as afirmações dos reviewers, discutindo-lhes os pontos-de-vista, rebatendo suas afirmações. Não é deselegante, ou defeso, como entre nós, um autor responder a um resenhador, que não é considerado um ser absoluto, superior, acima do bem e do mal, como em nosso meio. Pode estar errado no que afirma ou informa e o autor tem o direito de contestá-lo. Às vezes um livro leva anos a ser produzido e vem um resenhador em poucas linhas destruir o trabalho sem contemplação, apenas com direito de ser o ocupante de um rodapé apelidado de crítica.

A crítica verdadeira é outra coisa. É uma criação de natureza diferente da do ficcionista ou do poeta lírico. Ela não parte da imaginação criadora, da inventividade que aqueles escritores exercitam, e de que retiram a sua criação. A imaginação, trabalhando sobre a realidade e a experiência, constitui a fonte geradora do romance ou da poesia.

Já a poesia é uma atividade reflexiva, parenta da filosofia, que tem por base o espírito lógico, atuando sobre uma matéria-prima, que é a obra literária. A realidade para ela é a obra, o texto, que é uma realidade diferente, que tem uma realidade, uma natureza própria, diversa da realidade exterior. A obra, ao produzir-se, adquire uma personalidade, e é ela que serve de objeto à crítica. Ao deixar o autor ela se torna outra coisa, tem um valor intrínseco, fornecido por uma estrutura específica, inigualável, diferente de todas as demais formas da vida. O seu texto não é uma constituição, não é um código de leis sociais, não é uma legislação trabalhista. Mas ela contém vida. Nada mais errado do que opor literatura e vida. Pois a vida está dentro da literatura, que é vida também, que é a própria vida transubstanciada, transformada, em outra realidade vital.

Então a crítica a encara. Reveste-se de todo um aparato de instrumentais para penetrar na obra. É uma visão armada como dizia o grande Coleridge, um dos maiores críticos, que sabia muito bem o seu ofício. Com essa visão, ela analisa a obra depois de lê-la, e a leitura é essencial, indispensável, o que o simples resenhador não pode fazer, nem sempre, por falta de tempo. Com a leitura, feita por um espírito bem formado, bem provido de qualidades adquiridas com a formação feita na consideração do passado literário, que a literatura e a teoria literária são uma grande continuidade, o crítico é apto a dissecar e analisar a obra. É a segunda etapa do processo crítico. Análise graças a todas as técnicas que a poética, a retórica, a estilística, a lingüística, e tudo o mais, põem à sua disposição. E então passa à terceira etapa - o julgamento. Não há crítica sem juízo estético. O resenhador não pode passar de pronunciar uma impressão. É um impressionista, bom ou mau. Ele apenas arranha a obra na sua superfície, e fornece uma opinião, é um opiniático. Acha bom ou ruim por palpite, por atitude de gostei-não-gostei. Por achismo. Acha isso ou aquilo. Onde a demonstração, onde o fundamento de suas opiniões?

Evidentemente, crítica é ato mais sério, mais profundo, que não cabe numa notícia de livro. Por isso, passou para as revistas e livros especializados, ou para o ensino, para a cátedra.

Os resenhadores têm o seu lugar, mas não são críticos. (1983)

VI - A CRÍTICA NÃO MORREU

De vez em quando, sai a público uma velha reclamação contra o que chamam a morte da crítica: que não existe mais a crítica literária nos jornais, como outrora, nos rodapés semanais.

Realmente, a não ser alguns retardatários que ainda mantêm rodapés de crítica em jornais, esse tipo de crítica acabou. Responderia como Sílvio Romero a respeito da metafísica: quem a matou? Foi o progresso do jornalismo, que mudou a concepção da imprensa e o papel da crítica. Foi a vida moderna também.

De fato, a vida de outros tempos permitia que os jornais dessem grandes espaços para artigos em que críticos se espalhavam em estiradas análises ou comentários mais ou menos à margem dos livros do momento. A técnica, em geral, era escrever longos bolodórios em torno ou acerca dos livros publicados. Tendo que fazê-lo semanalmente não tinham tempo de ler o livro, nem de estudar para analisá-lo de maneira objetiva e técnica. Resultava que os artistas não passavam, em geral, da mais deslavada superficialidade e irresponsabilidade. Tiravam da obra três ou quatro citações a esmo de páginas diferentes ao longo do livro para dar a impressão de haverem lido o livro e discorriam sobre o tema, à margem do mesmo. Davam a sua opinião sobre o assunto do livro e não sobre o livro. Diziam de que tratava o autor. E na maioria dos casos, essa opinião era baseada na simpatia ou antipatia que o autor merecia do crítico, ou se ele pertencia ou não ao grupo a que o crítico estava ligado. Era uma opinião preconceituosa. Era o reinado do gostei-não-gostei, ou do achismo, como chamei certa feita. "Eu acho que é bom". Os fundamentos para consagrar ou condenar uma obra, fundamentos técnicos, esses eram inexistentes. Era o puro opiniatismo. Era a opinião, sem se basear em qualquer código ou critério, sem uma teoria dos valores. Valorava-se meramente pelo subjetivismo ou pelo personalismo. Não se cuidava de regras ou normas. A crítica era, como disse Anatole France, um passeio da alma pelas obras literárias. Era o movimento da alma do crítico. Não passava de uma autobiografia. O crítico oferecia a sua reação, a sua impressão, despertada nem sempre pela leitura da obra, como é o caso dos bons impressionistas.

Ora, esse tipo de crítica está morto. Não há que deplorar o seu desaparecimento, nem desejar a sua volta. Que fiquem alguns plumitivos a julgar que estão fazendo grande coisa. Mas não podem ser levados a sério porque sua tarefa está superada, esgotada, desmoralizada. Não há mais lugar para ela no mundo das letras. No século XIX, um Saint-Beuve estudava uma semana para escrever os seus famosos artigos, que enchiam colunas de jornais. Presentemente nem o crítico nem o leitor dispõem de tempo para isso na vida trepidante e apressada de hoje em dia. Nem é pago suficiente e adequadamente para o exercício desse mister. Nem o jornal concebe mais essa atividade em suas páginas. Não há mais espaço para tal matéria.

A imprensa moderna, atual, é viva, trepidante, apressada, como a vida atual. O jornalismo hodierno é a notícia, o comentário rápido, a informação. O livro, para ele, é também notícia. O público dispensa, nem tem tempo para ler, os longos rodapés, que eram habitualmente dirigidos para os intelectuais colegas do crítico, e não para o público. Só eles os liam. Hoje em dia nem eles o fazem.

De modo que o jornal atual não comporta mais os grandes rodapés de crítica. Cabe neles apenas a notícia curta, que forneça uma informação sobre o que é, e de que trata o livro, a fim de que o leitor, o público, possa formar uma idéia sucinta sobre o mesmo. Em vez de artigos críticos, o que importa é a pequena resenha informativa, com dados sumários sobre a obra e o autor, de modo a facilitar a escolha e a aquisição. Livro também é notícia, esse é o conceito que orienta o jornalismo moderno. A maneira de fornecer essa notícia varia de acordo com o jornal e com o espaço de que dispõe. E com a orientação da empresa. Jornal hoje é essa empresa que não pode desperdiçar o seu espaço. Mesmo nos grandes suplementos estrangeiros que ainda resistem o espaço é caro, e é vendido às editoras através de anúncios. As resenhas muita vez correspondem a anúncios. Aqui ainda não se estabeleceu o hábito das editoras compensarem os jornais, que lhes dedicam resenhas, com anúncios. Isso foi que tornou inviáveis os suplementos de jornais entre nós.

De modo que, nos jornais, a crítica foi substituída pelas resenhas rápidas, notícia, informação, sobre os livros. Abandonando os jornais, a crítica refugiou-se nas revistas especializadas, nas teses, nos livros, na cátedra universitária. A chamada crítica universitária, que tanto irrita os saudosistas da crítica jornalística, é um resultado da vida moderna. Só aí é que pode o espírito crítico exercer-se com seriedade, honestidade, profundidade, que exigem a análise e o julgamento da literatura. Aquilo que se chamava crítica, e que se fazia nos jornais, vertical ou horizontalmente, está morto, em definitivo. Não há mais clima para aquele tipo de crítica. (1980)

VII - POR UMA CRÍTICA BRASILEIRA

De modo geral, a crítica e a historiografia literárias no Brasil adquiriram, pelo longo período de domínio estrangeiro, o hábito mental de valorizar em demasia a contribuição externa à formação dos gêneros e obras que aqui se produzem. Encara-se nos livros o aspecto de influência exercida pelas literaturas européias como o mais importante. E isso tornou-se, por assim dizer, uma regra. Tanto mais valor quanto mais obediente aos modelos estrangeiros, europeus acima de tudo. Nossas epopéias, nosso lirismo, nosso romance, nosso conto, são bons ou maus na medida em que mais denotam a influência dos clássicos nesses gêneros.

Há inúmeros exemplos a provar essa atitude, sobrevivência do colonialismo mental. Exemplos antigos e modernos. Em obras como o Caramuru, de Santa Rita Durão, Uraguai, de Basílio da Gama, o que importa, para essa vertente de nossa crítica, é verificar e valorizar o que elas refletem da influência poderosa de Camões. E não reparam quanto eles possuem de brasileiro e quanto estão numa corrente que desemboca no Macunaíma e outras obras modernas. Em nossa lírica é posta em relevo a herança medieval ou renascentista ou moderna que ela encerra, e só por isto se julga a sua valia. O mesmo com a narrativa romanesca: tanto melhor quanto mais imita os modelos europeus. Fulano é o nosso Kafka, ou o nosso Proust, ou o nosso Faulkner, ou o nosso Julien Green. Fora daí, não adquirem fama, reconhecimento, consagração ou direito a figurar entre os maiores.

Esta é uma postura típica de nosso sentimento de inferioridade colonial, de que ainda não nos libertamos. É uma subserviência aos padrões externos de valoração: julgamento e classificação, a que nos acostumaram os séculos de colonialismo, veiculado pela educação que recebemos e pela formação literária de cunho predominantemente europeu. Mestres e discípulos, estreantes ou consagrados pautam-se pela mesma doutrina, seja na produção, seja na crítica.

Evidentemente, não se irá, em sã consciência, advogar a completa ruptura, entre nós, em relação à herança ocidental. Fomos criados na ponta da expansão européia, e ela carreou para nossa alma a maciça contribuição de valores culturais, espirituais, morais, sociais, que constituem o grosso de nossa vida mental e social. A herança européia é um fato de que não nos é possível libertar. E muito que bem.

Mas, entre essa atitude de respeitar e registrar o legado europeu e a subserviência ou o exclusivismo de considerá-lo como o único realmente válido, há um abismo que nos cumpre analisar para repelir a segunda alternativa.

Idêntica posição vigorosa na historiografia geral brasileira. Desde Varnhagen, a nossa historiografia oficial supervaloriza a contribuição portuguesa na construção de nosso país. É uma história escrita do ponto-de-vista luso, é a história dos portugueses no Brasil. É história do Brasil vista da Torre do Tombo.

Quando, em verdade, devemos proclamar e ensinar aos nossos jovens, que o Brasil foi feito pelos brasileiros. E por brasileiros entendam-se todos que aqui firmaram o pé desde o início e aqui permaneceram. Disse Ortega y Gasset que os europeus tornaram-se americanos desde o primeiro momento em que aqui se estabeleceram e não mais voltaram. E o nosso Araripe Júnior falou no fenômeno da "obnubilação brasílica" para bem definir a rutura que os portugueses praticavam ao se radicarem na nova terra. Esqueciam os laços que os prendiam ao passado e à terra de origem, no contato com as novas paisagens, flora, fauna, hábitos de trabalho, luta e convivência, a que se obrigaram no habitat novo. E graças a esse processo operava-se uma revolução interior que fazia e fez deles homens novos. E foram esses homens novos, esse homem novo, que construíram o Brasil. Criaram povoações mais tarde cidades, abriram caminhos e estradas, domesticaram animais, espalharam a agricultura, construíram fazendas, penetraram pelo interior. Esses os homens que fizeram o nosso país, os quais, em grande parte, até o século XVIII nem o idioma português falavam. Eles é que criaram nossa música, nossas festas de arraial, imprimiram suavidade à língua herdada de Portugal, tornaram-na diferente.

Tal processo de diferenciação não foi possível senão como resultado das intensas miscigenação e aculturação aqui executadas espontaneamente, como produto da convivência e fusão dos três componentes étnicos a que fomos submetidos nos cinco séculos de existência. E a esse processo de diferenciação é que ficamos devendo toda a nossa formação.

Como deixar de ver isso nas letras, na música, na dança, na pintura, na arquitetura, na escultura. A pedra-sabão, material das obras-primas do Aleijadinho, obrigou-o a adaptar os padrões europeus criando um barroco diferente.

Essa "diferença" é que os nossos críticos de arte e letras, em grande maioria, subestimam. Amiúde nem lhe dão atenção, preocupados em mostrar que os nossos artistas e escritores souberam muito bem imitar os modelos europeus. E por isso, ao analisar e interpretar os nossos produtos, só enxergam neles o lado revelador da imitação ou importação. (1982)

VIII - UMA LITERATURA RICA

Há quatro fenômenos que, no Brasil, se destacam como os mais autênticos e importantes, os mais característicos mesmo do nosso povo: a música popular, o carnaval, o futebol e a literatura. São as expressões mais legítimas do nosso espírito criador, da nossa criatividade. Ninguém, nem nada nesse mundo, consegue destruí-las. Tudo o mais fracassa ou não funciona a contento das exigências e necessidades de uma organização civilizatória. Não possuímos sistema educacional, organização de saúde, estrutura econômica e financeira, administração à altura. Em meio a toda uma desestrutura, aquelas produções surgem soberanas, superando todas as deficiências gerais e dificuldades de vida.

É que elas são partidas da alma popular, como suas manifestações legítimas. Não dependem de nada, senão da alma do povo. E essa é espírito e o espírito floresce onde quer. Elas são o próprio povo falando, expressando-se de maneira autônoma, sem qualquer interferência. Convivem com a inferioridade social, com a desorganização geral, até com a pobreza e a miséria. Basta assistir a um carnaval para ficar convencido disso.

Assim acontece com a literatura. Desde cedo, desde as origens que a alma do povo brasileiro se expressa através da literatura. Um Gregório de Matos, em pleno século XVII já falava em nome de uma população nova com a primeira voz de protesto contra os erros de colonização que se impunha no Brasil. O mesmo com o Padre Antônio Vieira, um brasileiro apontando com veemência os malefícios que corroíam já então a nossa incipiente ordem social. E assim por diante. A literatura que se produziu no Brasil, em todos os séculos, veio crescendo, na linha de um intenso processo de descolonização e autonomia, que a tornou nitidamente diferenciada da européia, sem embargo de influências diversas, como a portuguesa, a espanhola, a francesa, para falar apenas das principais, pois houve também a italiana e a inglesa, e ainda as clássicas.

E graças a esse esforço, a essa busca de identidade e originalidade, a literatura brasileira cresceu e amadureceu, a ponto de ser hoje uma literatura de fisionomia própria, ligada à realidade nacional, autêntica expressão de nossa alma, de nossa sensibilidade, de nossos costumes, de uma língua exclusivamente nossa, cada vez mais diferenciada da matriz portuguesa.

E mais do que isso. Pela massa da produção, que leva a considerar o povo brasileiro como essencialmente literário, ela é hoje a maior das Américas. Maior em quantidade e em qualidade. Encontram-se grandes figuras literárias em outros países do Continente. Dificilmente, porém, do ponto-de-vista da quantidade de escritores e produção literária, qualquer das outras literaturas não resistirá a uma comparação com a nossa. E, além do número, sobressalta ainda a diversidade de tipos, o que resulta, sem dúvida, da riqueza e diversidade da nossa civilização de âmbito continental. Ligada à rugosa realidade, ela se manifesta de maneira tão variada quanto a realidade nacional, social. A literatura do Amazonas é diferente da nordestina e da gaúcha, e a do Centro-Oeste o é da surgida nos centros urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo, como a praieira do Recôncavo possui suas características próprias. O regionalismo é uma força no Brasil literário, sem que se prejudiquem as numerosas abordagens técnicas.

A literatura brasileira é hoje uma grande literatura, na poesia e na prosa. Adquiriu uma força e uma fisionomia, que a tornam identificável, pois conseguiu formar uma identidade inconfundível.

Isto não é atitude ufanista. Precisamos perder o nosso complexo de inferioridade colonial e afirmar com orgulho aquilo que logramos realizar por nós mesmos. Nossos defeitos de civilização não nos devem impedir de ver o que fizemos graças a nós mesmos, até contra as resistências arcaizantes. O processo de descolonização confunde-se com a tendência à modernização, com o esforço de libertar-nos do sistema colonial.

Pois bem, a literatura foi o maior instrumento dessa descolonização e modernização, que corresponde ao processo civilizatório. Abafada em todo o período colonial e mesmo imperial, ela não deixou de viver, marginalizada, subterraneamente, no sentido da conquista da autonomia e da formação de um povo independente, falando uma linguagem nova, com uma sensibilidade nascida aqui, numa região nova, com uma sociedade nova. Não podemos continuar a desconhecer tudo isso, e insistir numa subordinação ao estrangeiro e ao passado. Foi contra tudo isso que nós nos fizemos e a literatura constituiu a expressão legítima desse esforço. Fomos criadores de vida, de uma vida nova, de uma língua nova, e a literatura traduziu isso às mil maravilhas. Reconhecê-lo não é atitute ufanista, antes constatação de uma realidade. E isso pode ser verificado no passado literário, como também no presente, pela qualidade superior de nossa produção literária em todos os gêneros, com obras que são de exclusiva feição brasileira, como Os Sertões de Euclides da Cunha, livro inclassificável pelos padrões tradicionais. Que é tudo isso? Que é senão uma identidade de características peculiares, diferente, com identidade própria?

Nosso gênio de povo encontrou expressão máxima na literatura. E disso nos devemos orgulhar. (1983)

IX - HISTÓRIA E LITERATURA

É fato que, no fogo da campanha por mim desencadeada, nos idos de 50, contra a pasmaceira que dominava o exercício da crítica literária no Brasil, combati muito o predomínio da história nas tarefas de análise e interpretação do fenômeno literário. Era esta uma herança do século XIX, quando o historicismo constituía a regra fundamental. As obras e os autores eram encarados, para explicação, inseridos no contexto ambiental - histórico, social, geográfico, racial, biográfico. Para os corifeus da crítica até então, bastava estabelecer quais os pressupostos sociais, históricos, geográficos, etc. Para que a obra fosse entendida e julgada. A crítica confundia-se com a história e era suficiente que o trabalho crítico mostrasse as raízes exteriores ou extrínsecas da obra para satisfazer. O trabalho crítico, as obras de crítica, eram grandes levantamentos históricos em torno da época, da vida do autor, do meio em que viveu, dos fatores que determinaram sua vida e lhe comunicaram sua ideologia. O exame da obra não era objeto de consideração. O que importava era o autor, e o método crítico de Sainte-Beuve, ao lado do determinismo de Taine (sobretudo) propiciou o modelo geralmente seguido bem ou mal. O nosso grande Sílvio Romero é o exemplo brasileiro mais representativo dessa orientação.

Em geral, vasculhava-se a vida íntima do escritor, suas ligações amorosas, suas idéias religiosas ou políticas, sua atuação como homem ou como cidadão. E bastava. Se a obra servisse algum subsídio à explicação do autor, muito que bem, aproveitava-se. Chegava-se às vezes ao autor através da obra. Do contrário, a obra não era considerada.

Essa atitude crítica, na maioria dos casos, fundia-se com a tendência impressionista, isto é, o principal do ato crítico seria um "passeio de alma pelas obras-primas", como disse um de seus cultores, Anatole France. A esse passeio somavam-se os dados obtidos pela observação do meio, e tudo bem. Era isso a crítica literária.

Ora, quando me rebelei contra esse estado de coisas, convencido de que não era isso a crítica pelo conhecimento que tinha do que ocorria nos grandes centros mundiais de produção cultural, provoquei a reação natural dos detentores do que Guimarães Rosa chamou de "a moeda má", que estava sendo expulsa pela "moeda boa", uma comparação de natureza econômica, mas aplicável ao fato.

E o que alguns inconformados disseram é que eu visava a destruir a história. Outro disse que eu expulsara a história pela porta, mas ela reentrava pela janela.

Nada mais falso, evidentemente um recurso de polêmica inferior.

Na minha campanha, jamais pretendi destruir a história como fator componente do fenômeno literário e conseqüentemente do ato crítico.

O que tinha em mente, e hoje se compreende isso, malgrado certas insistências na tecla por parte de alguns, era exagero da história, era o historismo ou o historicismo, vale dizer, a tendência a querer explicar a obra de arte literária exclusivamente pela história, pelos fatores extrínsecos que a rodeiam. E que influem na sua criação, mas não são a obra. Esta gera-se na história (entendendo-se história como o conjunto dos elementos extrínsecos), mas liberta-se dela, transfigura os dados que ela oferece, transpõe por meio da linguagem literária esses elementos em substância estética. O estético inclui, incorpora o histórico, o social, o político, o religioso, o econômico, porém esses elementos não mais existem na obra tais como estão na realidade. O real histórico é diverso do real literário. A verdade histórica é diferente da verdade estética ou poética. Está acima dela, com ela não se confunde.

Portanto, numa palavra: rejeite-se o historicismo, contudo respeite-se a história. Seria uma incoerência de minha parte condenar a história e publicar, como fiz, uma obra de história literária. (1979)

X - LITERÁRIO E SOCIAL

Na consideração do problema das relações entre o literário e o social, dois aspectos há que levar em conta. De um lado, teremos a sociologia da literatura; de outro, a interpretação sociológica do fenômeno literário ou sociologia literária ou crítica sociológica da literatura. A primeira - sociologia da literatura - é legítima, compreendendo toda uma série de tarefas ligadas à sociologia; a segunda, podendo dar alguma contribuição ao esclarecimento e interpretação do literário, é, todavia, sujeita a restrições de ordem doutrinária e prática, que a tornam menos válida como método de interpretação do fenômeno da literalidade.

À interpretação sociológica da literatura foi formulada no século XIX, embora seus principais postulados estivessem sendo levantados ao longo do século XVIII, e mesmo alguns deles remontassem até aos gregos. Mas foi Taine quem codificou em termos filosóficos os seus principais princípios - com a famosa trindade tainiana do meio, terra e momento. Os fenômenos artísticos seriam o resultado da ação de fatores externos, oriundos da biologia, da geografia, da história. A sua gênese - daí a interpretação genética das artes - seria "determinada" por forças exteriores que se encontravam na sociedade, no meio geográfico e na raça do autor. Os escritores sofreriam a ação desses fatores de maneira determinante, absoluta, necessária, não podiam fugir-lhe de modo que a compreensão das obras literárias residiria no exame daqueles fatores, que representavam verdadeiro poder causal. E bastava conhecê-los para compreender e interpretar a literatura produzida pelo povo que sofria as pressões daquelas forças.

No Brasil, o grande Sílvio Romero tornou-se o representante mais notável da referida orientação crítico-historiográfica, ao fazer a sua História da Literatura Brasileira baseada nessa concepção, sobretudo estampada na "Introdução", hoje vista como um monumento de distorção crítica.

E, por sua influência, a crítica e a historiografia literárias no Brasil ficaram marcadas, até a metade do século XX, por essa visão, evidentemente unilateral, monista, incompleta do fenômeno artístico.

Mais tarde, ainda segundo esse reducionismo da literatura às suas exterioridades, acrescentou-se outro fator - o econômico, devido a diferentes filosofia e métodos de abordagem originários da doutrina marxista. Não passa tal interpretação de um prolongamento do século XIX, no que concerne à interpretação artística. É o mesmo sociologismo, o que a faz uma vertente reacionária do pensamento crítico.

É evidente que a interpretação sociológica da literatura pode fornecer contribuição útil se a quisermos limitar ao estudo dos elementos exteriores do fenômeno - autor, meio social e econômico. Mas ela perde de todo a validade quando se apresenta como uma interpretação totalizante. A sua contribuição pode ser útil, às vezes, se a limitarmos ao seu campo de ação, mas é irrisória se a tornarmos uma visão exclusiva, pois ela apenas apreende o elemento social que existe na literatura.

O fato literário é um complexo de elementos intrínsecos que lhe são peculiares nos diferentes gêneros (personagem, enredo, ponto-de-vista, rima, metro, estilo, etc.), e de elementos extrínsecos (autor, meio, etc.), encontradiços também, em outros fenômenos da vida humana. A interpretação sociológica procura reduzir a tarefa interpretativa (o ato crítico) a apenas os elementos extrínsecos. Analisar a biografia do autor (como queria e fez Sainte-Beuve) não é bastante para compreender-lhe a obra. Do mesmo modo, conhecer a raça ou a geografia do povo não se traduz em compreensão da obra. O determinismo, nas suas várias vertentes, é doutrina superada.

Tudo isso quanto à interpretação sociológica da literatura. Há, porém, outro campo em que a sociologia pode prestar serviço inestimável à crítica literária. É a sociologia da literatura.

O estudo do literário faz-se em duas fases: numa primeira, estudam-se a criação, o conteúdo, a forma, os elementos intrínsecos; numa segunda a distribuição, a recepção, a irradiação. Na primeira é a literatura em si mesma, no seu interior; na segunda é o produto. Este último é o campo da sociologia da Literatura.

Ela estuda o escritor no tempo, a profissão de escritor, os direitos autorais, as gerações, as mentalidades generacionais, os problemas da difusão do produto ou livro, o financiamento da produção, o meio de vida do escritor, os editores e a função editorial, o mecenato, a distribuição, o leitor nos seus diversos tipos e reações, a popularidade dos livros, a sua capacidade de permanência, sua influência no público, a propaganda e a promoção, os fatores do sucesso, as facilidades para a leitura, as bibliotecas, os processos de distribuição e venda, as livrarias e o papel do livreiro e sua educação, as relações do livro com os outros meios de comunicação de massa (imprensa, rádio e televisão), as formas populares da criação (quadrinhos, cordel, folclore, etc.). De um lado, está a criação, é a primeira fase do estudo literário; do outro, o consumo. Este último é o campo da sociologia da literatura. Esta sociologia da literatura é legítima.

Ainda resta um último tópico. A sociologia geral pode beneficiar-se no estudo do social, pelo exame de obras literárias que lhe fornecem subsídios importantes para o conhecimento do mesmo. O romance ou a epopéia, por exemplo, são aptos, em certos casos, a propiciar conhecimento válido sobre determinadas sociedades. Podemos saber muito sobre os costumes do Brasil do século XIX através dos romances de Machado de Assis: o tipo de festas, de casamento, de namoro, de meio de vida. O mesmo ocorre com Balzac na França.

Mas isso, nada tem a ver com a crítica literária, nem com o conhecimento do literário ou da literalidade. Isto é sociologia. (1979)

XI - HISTÓRIA LITERÁRIA

A partir do início do século atual, os estudos literários sofreram um redirecionamento produzido em parte pela publicação da Estética de Beneditto Croce, em 1902. Até então, e durante todo o século XIX, o que vigorou foi a teoria positivista do determinismo naturalista, que encarava o fenômeno literário pela sua gênese, isto é, procurava interpretá-lo à luz dos fatores que lhe dariam nascimento - a famosa trindade taineana do meio, raça, momento. Explicada a origem, o meio em que surgia, estava interpretada a literatura. Além disso dominava essa doutrina o fatualismo ou a pesquisa e levantamento dos fatos ligados ao autor, à história local, ao ambiente social, para termos terminado o estudo literário. Bastava saber os detalhes da vida dos autores e produção da obra, do ambiente que os cercava, para termos resolvida a compreensão literária.

O início do século atual deu uma guinada contra o que se conhecia como o "lansonismo", palavra adotada para definir o modelo francês dessa orientação, assim batizado pelo nome do grande mestre da historiografia francesa, Gustave Lanson, cuja obra de história literária da França era uma espécie de bíblia.

Uma das primeiras reações contra esse "positivismo" partiu dos alemães, entre os quais Gundolf. Entenda-se, aliás, por positivismo em história literária não o positivismo de Augusto Comte, mas todo o conjunto de técnicas de estabelecimento "positivo" dos fatos literários, de acordo com as normas acima aludidas, oriundas do século XIX, e baseadas no pressuposto de que "explicar" a literatura significava explicar a sua origem nos fatos "positivos", facilmente identificáveis , de autoria, gênese nos fatores exteriores do meio social, biológico, geográfico, histórico. O nosso Sílvio Romero é o exemplo brasileiro dessa linhagem de historiadores literários, em que se especializou o século XIX. É a linha decimononista, para empregar a palavra cara a Capistrano de Abreu.

Aqueles alemães puseram em execução um tipo de historiografia pura de preocupação fatual, isenta de notinhas de pé de página e dados referenciais de natureza histórica. Começou a reação em prol de uma historiografia que fosse mais literária que histórica. A história passou para segundo plano. Buscou-se acentuar o literário, procurando, explicá-lo nos seus elementos específicos, de dentro e não de fora da obra.

Surgiram os formalistas eslavos, russos, depois tchecos, primeiro de Moscou e depois de Praga, e a linha divisória mais acentuou-se, imprimindo um curso diferente, no sentido de uma historiografia peculiar para um fenômeno que é peculiar.

Daí em diante, a tendência consolidou-se e no Primeiro Congresso de História Literária realizado em Budapeste, em 1931, ficaram firmadas as posições, renovadora de um lado e conservadora do outro. Mas a força renovadora não mais se estancou.

Uma corrente de pensamento marxista tornou-se a única forma de reação decimononista, ao ressaltar os aspectos de influência sociológica e econômica na explicação do fenômeno estético, pondo em relevo também a consideração ao papel da classe a que pertence o escritor, como elemento interpretativo. Era mais um monismo ou reducionismo a um elemento explicativo, no caso o econômico em seguimento aos monismos biológicos, geográfico e social do século XIX. Compreende-se assim o marxismo na historiografia literária como uma teoria nitidamente reacionária.

Em nosso século, multiplicaram-se as buscas pelo estabelecimento de uma concepção historiográfica aplicada ao fenômeno literário, que fosse imune das conotações exteriores ao próprio fenômeno, que tentasse encará-lo de dentro, do seu intrínseco, dos valores próprios. Valorizou-se o intrínseco da literatura, aquilo que a caracteriza e especifica.

Nessa direção caminharam passo a passo a crítica e a história literária, duas disciplinas que se aplicam ao estudo da literatura e que não se devem separar:
uma fornecendo à outra dados complementares de explicação. Não se pode fazer
a crítica sem a história literária e vice-versa.

As diversas correntes renovadoras defrontam-se hoje aplicando os seus métodos no mesmo propósito. Não se anulam, ao contrário, somam-se. Cada uma enfatiza um aspecto, que serve para a visão global. O estudo da literatura tem de ser feito de maneira global, usando tudo que estiver à disposição, e encarando o fenômeno como através de um calidoscópio, por todos os seus ângulos. Nenhuma obra é igual a outra, por isso exigem-se métodos de abordagem diferentes, de acordo com essa peculiaridade. É a morte dos monismos, que só vêem a literatura por um aspecto, julgado o principal. E não há em literatura aspecto principal. Todos são válidos e importantes. (1981)

XII - O FORMALISMO ESLAVO

Foi o movimento formalista, oriundo de Moscou, e passado depois para Praga, quando caiu em desgraça na União Soviética, a fonte da renovação e reorientação da crítica literária contemporânea. Surgido durante a Primeira Guerra Mundial, permaneceu a escola formalista russa cerca de 10 anos até que se instalasse na Tchecoslováquia. Sua origem e evolução corresponderam à necessidade de encarar as novas orientações estéticas e de enfrentar, de um ponto-de-vista crítico-historiográfico, a transformação do conceito de forma na estética contemporânea no Ocidente. Foi uma reação à concepção positivista em história e crítica literárias dominante no Século XIX. Assim, em 1915, foi fundado, por um grupo de jovens, impregnados da tendência antipositivista, o Círculo Lingüístico de Moscou.

Na minha permanência nos Estados Unidos, entre 1942 e 1947, tomei conhecimento do assunto, ainda pouco divulgado fora do mundo eslavo. Só um estudo geral de Nina Gourfinkel, publicado na revista Le Monde Slave, em 1929, e alguns trabalhos de Jan Mukarovsky, nos Travaux du Cercle Linguistique de Prague, sobre o problema da língua literária e a reabilitação da Poética, eram acessíveis em línguas ocidentais. Mas decisivos foram o encontro com Roman Jackobson, em seus cursos em Nova York, com Matoso Câmara e Euryaldo Canabrava, e a leitura dos estudos de René Wellek, ambos egressos da escola de Praga, e exilados nos Estados Unidos. Só muito mais tarde é que foi publicada a obra fundamental de Victor Erlich, Russian Formalism, de 1955, em primeira edição, quando o movimento se divulgou nos países ocidentais. Hoje, é vasta a bibliografia ativa e passiva ligada ao formalismo. Mais tarde ainda é que a antologia publicada em França por Tzvetan Todorov, em 1955, Théorie de la Litterature, já traduzida no Brasil pela Globo, deu difusão maior às doutrinas e métodos da escola. O seu banimento da União Soviética resultou da incompatibilidade entre as teorias formalistas e o marxismo oficial com a sua aplicação sociológica à análise crítica da literatura.

No prefácio do livro capital de Erlich, o grande René Wellek acentua os pontos fundamentais da doutrina formalista, a começar pela nova orientação dada à interpretação do conceito de forma, que já vinha de antes, em reação à separação entre forma e conteúdo, vigente no século XIX.

Para Wellek, o formalismo parte da premissa de que a obra de arte em si mesma deve constituir o centro de atenção da crítica; assinala e põe em relevo a diferença essencial entre a literatura e a vida, rejeita as explicações da literatura como fenômeno sociológico, psicológico ou biográfico, e desenvolve métodos peculiares para análise das obras literárias e para traçar a história da literatura em seus próprios termos. A concepção decimononista de que a literatura é uma instituição social e uma manifestação de pensamento social foi posta em xeque. Partiu a escola da noção de que a literatura é feita de palavras, é obra de arte de linguagem, e que a crítica deve encará-la na sua intimidade intrínseca, a começar pelos modos de expressão. Em vez de ter que derivar de outras formas do conhecimento - filologia, história, política, sociologia - e seus respectivos métodos de análise, deverá o estudo literário, a crítica, tornar-se independente, elegendo métodos próprios, procurando penetrar o seu objetivo específico, que são as qualidades específicas do material literário. Assim, a Poética seria a disciplina, ou o conjunto de disciplinas e técnicas de abordagem, para o estudo da literatura como arte. O formalismo repeliu a velha dicotomia entre forma e conteúdo, defendendo a tese de que todos os elementos da obra literária são formais (daí formalismo), no sentido de que todos participam do efeito artístico completo: estrutura métrica, estilo, composição, tema, caracterização, enredo, situação, etc., matéria e essência que constituem a forma e o conteúdo unidos, na estrutura global que é a obra de arte.

O formalismo, de origem eslava, penetrou em toda a parte no sentido do ideal de se estabelecer, em termos científicos, uma disciplina literária autônoma, para substituir a velha crítica concebida como estudo da literatura no seu aspecto social (que existe mas é secundário). Uma disciplina especificamente literária, visando ao estudo dos elementos literários das obras literárias, isto é, obra de arte de linguagem.

Atualmente as teorias do formalismo estão vivas na maioria das tendências críticas, mesmo quando não confessadamente. E o interessante é que elas tiveram desenvolvimento paralelo com outras correntes como o new criticism anglo-americano, com teses semelhantes. Hoje a disciplina crítica assumiu uma posição nitidamente conseqüente às formuladas pelo formalismo eslavo. Estamos próximos daquela disciplina autônoma para o estudo literário, a Poética. (1980)

XIII - PRIMADO DA LEITURA

Um dos defeitos graves do ensino superior brasileiro decorre do fato da incapacidade para a leitura. Em Letras, então, essa deficiência é flagrante. E aqui é que é fundamental a exigência da leitura. Não é possível fazer-se ensino de Letras sem leitura maciça. O mesmo, aliás, em História. E o que é importantíssimo, ler muito. Não só em qualidade mas também em quantidade.

Atualmente, a leitura dos textos de literatura é, na grande maioria dos casos, substituída pela leitura de teorias e obras didáticas. O mestre Gustavo Lanson, certa feita, pronunciou-se contra o vezo de ler sobre os autores em vez de ler os autores. A história deles substituíra, com o seu escândalo, o lugar das suas obras.

É uma regra de ouro esta de exigir em ensino de Línguas e literaturas a leitura constante e em quantidade dos grandes autores. Em lugar de encher o tempo dos alunos em leituras teóricas deve-se obrigá-los a ler as próprias obras dos autores. Em vez de uma biografia ou trabalho crítico, ou de uma discussão teórica, o que importa no aprendizado literário é a leitura dos textos dos grandes escritores. Lendo é que se aprende literatura, como lendo é que se aprende a escrever e pensar.

O mesmo deve dizer-se a rspeito do bom aprendizado da língua vernácula. Só lendo e escrevendo é que se adquire o domínio do idioma. Lendo e escrevendo é que se aprende a ler, escrever e falar.

O que observamos hoje entre o estudantado é a incapacidade de expressão e comunicação, precisamente pela ausência de leitura. Estamos cansados de ver como já perderam, ou nunca tiveram, o hábito da leitura. Mesmo em cursos de Letras, ao exigir-se a leitura de um romance, é comum a a reação do estudante contrariamente ao que se pede. "Ora, ler esse romance enorme pra quê?" E, no entanto, estudar Letras sem ler romances e outras obras dos diversos gêneros é melhor desistir. Pretender ser diplomado em letras sem ler romances!...

O ensino de Letras deveria ser baseado essencialmente na leitura das grandes obras. É nela que se adquire o conhecimento do que é o fenômeno literário, como é a sua estrutura, qual a terminologia própria e qual a que deve ser usada no tratamento crítico dessas obras.

Esse problema da terminologia é outro ponto relevante. A boa e adequada terminologia é sempre um produto da leitura compacta e maciça das obras literárias. Não adianta pretender criar termos arrevezados, como é hábito, atualmente, termos abstratos,desligados do contexto. Significante e significado não podem existir separadamente, um tem que ser ajustado ao outro, têm que mostrar um sentido.

Outra mania atual é a criação de sentidos novos para palavras antigas, com um significado já enraizado na tradição filosófica ou estética. Não nos é lícito deturpar o significado usual, na cultura geral, dos conceitos emprestando-lhes uma variação de sentido. Catálise é catálise mesmo qualquer que seja o idioma. Não é legítimo empregar-se uma palavra só pelo prazer de modificar a sua significação tradicional.

Tudo isso perturba a leitura. Mas estamos realmente no reinado da teoria, com o abandono dessa coisa simples que é a leitura. É comum o jovem de hoje não ter o gosto de ler. Desde os anos iniciais do ensino não se estimula o gosto da leitura. Os colégios primários e secundários não têm, na sua maioria, bibliotecas. Amando o livro, inclusive na sua aparência material, é que se adquire a propensão para ler. E se deve ler tudo na mocidade: estórias policiais, de detetive, de aventura, de amor. Tudo serve no início para estimular o gosto da leitura. O que importa é ler. Pois com a leitura em massa criará o senso de discriminação, a capacidade de distinguir o bom e o mau livro. A leitura é construtiva. Seus benefícios ficam no inconsciente, e vêm à superfície quando quer que se enseje a opotunidade de julgar. Nas boas universidades, os cursos dão para desempenho obrigatório uma lista de obras a serem lidas ao longo do período. Quinhentas páginas de fulano, mil de beltrano, etc. O aluno fica encharcado de um material que lhe propicia uma formação básica na especialidade. Como é que se entra nos segredos de uma disciplina sem a leitura quantitativa e qualitativa dos livros que constituem o seu corpus? Entretanto, sabemos de muitos professores com quem isso ocorre. Professores de literatura brasileira, por exemplo (e já não falamos de alunos!), que não leram toda a nossa literatura. São muitos, são quase legião. (1980)

XIV - O PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO

As nações nascidas do pacto colonial europeu ainda não se libertaram de todos os estigmas que a dominação secular criou nos povos nos quais se implantou e nele viveram o regime colonial. Ao longo do tempo, criaram-se situações de dependência econômica, social, moral, intelectual, cultural, ainda hoje, benéficos ou maléficos, são característicos das civilizações que aqui se desenvolveram.

Todavia, a libertação da situação de dependência vem constituindo um processo contínuo e coerente, muito embora numa luta cruenta e incruenta - através da história, em obediência a uma idéia-força, que se tornou um impulso de causalidade interna, de vigor variável, mas eficiente e vitorioso a longo prazo.

Essa idéia-força foi a busca pertinaz da identidade nacional, da criação do caráter nacional, traduzível em todas as formas da atividade - social, política, espiritual, artística, lingüística. Era uma forma de afirmação nacional.

É claro que essa afirmação encontrou sempre a oposição e a reação por parte dos colonizadores. Toda a sorte de medidas foram inventadas - violentas ou sub-reptícias - para coibir os impulsos naturais de autonomia.

Mas, a despeito da reação castradora ou inibidora, a corrente autonômica jamais, em nenhuma parte, deixou de exercer-se com maior ou menor intensidade, às vezes em proporção ao grau de violência da reação.

O argumento mais falso da colonização era que estavam implantando a civilização contra a barbárie. Em nome dessa noção tudo se permitia: o massacre das populações aborígines a imposição fiscal, a espoliação econômica, o aniquilamento geográfico. A colonização significou exploração, e nenhuma nação européia colonizadora ficou com as mãos limpas nesse sistema de conquista e domínio.

A afirmação autonômica anticolonialista, contudo, não se deteve apesar do esforço dos dominadores. A inteligência local não se deixou intimidar ante a violência da mão forte, tendo como resultado todo um processo de descolonização que abrangeu as diversas atividades do homem local. As raízes da luta anticolonial, originadas desde o início da colonização, foram penetrando cada vez mais fundo, criando verdadeira ideologia que alimentou os espíritos ao longo do desenvolvimento histórico. A reflexão sobre os países novos cresceu em importância, resultando uma verdadeira cultura autóctone.

Nas Américas, especialmente no Brasil, o processo anticolonial, ou de descolonização intelectual, teve continuidade desde o início. Entre nós, ele deu lugar a uma "tradição afortunada", rica e intensa. A literatura coube a maior parte na luta. E hoje em dia, desde o Romantismo, ela contém um núcleo de pensamento crítico e de reflexão consciente, após um longo período de instinto nativista, mantido na sujeição pela mó colonizadora.

O processo da descolonização continua. E deve prosseguir porque a tática mais recente da reação é o sentimentalismo em relação às chamadas mães-pátrias, que procuram manter os laços colonizadores até pelo domínio lingüístico. Tanto na área espanhola quanto portuguesa, há entre os dominados quem defenda a manutenção da sujeição lingüística aos cânones europeus de fala e escrita, advogando uma unidade de língua impossível.

O maior empecilho ao desenvolvimento e consolidação do processo de descolonização é esse sentimentalismo, que mantém a sujeição contrária aos interesses dos povos novos. Sujeição que esconde ainda hoje uma mentalidade colonizadora por parte dos europeus e seus agentes. E em muitos casos, interesses econômicos.

No estágio a que atingiram os povos do Novo Mundo, o processo de descolonização é uma força que não pode ser minimizada nem posta de lado. É mister que continuem em obras e idéias, em conceitos críticos e realizações práticas. Para isso, precisamos estar conscientes de sua necessidade em relação à realidade nacional. (1981)

XV - SER AMERICANO

Evidentemente, Jorge Luís Borges não sabe ser americano. Nunca soube. Ele é um europeu desgarrado escrevendo em espanhol. Mas a América, tomada em sentido global, o sentimento íntimo que distingue o americano, o instinto de nacionalidade americano, ele não parece conhecer. Não vive, não toca, não sente a realidade americana. Aquela busca da americanidade, da identificação nacional brasileira, que os nossos românticos viveram, ele desconhece, porque é simplesmente um europeu.

Sim, ele tem razão em dizer que não existe uma literatura latino-americana: isto simplesmente porque não existe a América Latina como um bloco. E sim Brasil, Argentina, Equador, Peru, etc.

Mas negar que existem literaturas nas diversas regiões da América Latina, só por total desconhecimento de causa, porque só possui olhos europeus, incapazes de ver o que se passa por aqui. A realidade local lhe escapa, não porque esteja cego, não porque esteja cego, mas porque nunca teve sensibilidade para sentir o genius loci, para apreender as nossas diferenças. Ele mesmo afirma que sua obra são duas idéias, que surgem independentes do mundo exterior. Por isso, não vê o que se passa em torno.

Já se foi o tempo em que não víamos as diferenças, quando nossa tendência era valorizar acima de tudo as semelhanças que nos prendiam à Europa. Voltávamos da Europa. Uma Europa que se traduzia numa tradição ibérica, branca, católica, ocidental. A polêmica de 1875 entre Alencar e Nabuco foi a expressão máxima dessa mentalidade. Torcíamos o nariz contra justamente o aspecto nosso, local, diferenciado, para supervalorizar o que constituía a herança européia.

Ora, hoje temos visão clara do que somos. Não vale fazer como Borges e dizer que não somos índios. Sim, não somos índios, nem brancos,nem negros. Somos civilizações mestiças, que se desenvolveram à custa do esquecimento das contribuições originais isoladas, para constituir um todo diferente graças à mistura das contribuições de cada uma. Daí a originalidade, que atualmente temos orgulho em declarar, defender, exaltar. Não, não somos europeus, espanhóis, portugueses, ingleses, etc. Somos brasileiros, argentinos, chilenos, peruanos, norte-americanos. Nós fizemos algo novo, que não se identifica, nem de longe, com as contribuições originárias. A terra nova, as condições de vida, a fauna, a flora, nos deram os elementos com que fundimos uma civilização, que está sendo reconhecida agora como peculiar. É claro que no passado não havia o entendimento dessa situação. Mas isso está cada vez mais evidente a quem queira ver, não com olhos europeus, mas com visão americana. Que os europeus se orgulhem de ser europeus, é natural. Mas já passou o tempo em que nos olhavam de cima para um lá-bas que lhes parecia um mundo estranho e exótico, digno apenas de ser explorado. Essa postura, todavia, não é justa num latino-americano. Já não é mais possível aquela atitude dos americanos do sul e do norte de desbancar o seu país. O que fizemos é digno de louvor. Embora seja diferente de tudo o que há na Europa, seja qual for o país de onde se originou a nossa herança.

Borges é um europeu. O último, talvez, dos escritores da América que ainda não retornaram da Europa, conforme era comum entre grande parte de nossos escritores americanos. Não sei se este sentimento existe muito forte entre os hispano-americanos. Mas entre os brasileiros depois do Modernismo esta postura já foi superada. O mesmo entre os norte-americanos de após a geração chamada perdida (the lost generation). Também nos Estados Unidos os escritores exilados já retornaram da Europa, e não mais sentem necessidade de expatriar-se para fazer literatura. Há no país com que argamassar uma literatura. Tornando-a original. Borges não sente isso. Mas nós, escritores brasileiros atuais, sentimos que a realidade nacional é rica de seiva para criar literatura. Não precisamos mais buscar inspiração fora para criar imagens. É só ter força e capacidade para captar a nossa realidade. O instinto de nacionalidade, a que se referia o brasileiro Machado de Assis, é a mola que nos serve de guia e estimulante para escrever essa literatura que o mundo começa a compreender e festejar como uma contribuição, não apenas pitoresca, mas original e peculiar. Porque inspirada numa realidade própria, local. Daí se poder dizer que o Brasil, por exemplo, já possui uma grande literatura. Rica, forte, original, diferente da européias e também das demais das Américas. Foi lento o processo de germinação. E o aprendizado. Mas que conseguimos atingir um resultado positivo, não há dúvida. É só procurar conhecer. Não com olhos europeus. Não a encarando como prolongamento da européia. Porém como coisa nova e nossa. Feita por nós. (1980)

XVI - LÍNGUA BRASILEIRA

Em 1935, por Decreto nº 25, de 16 de setembro, a Câmara Municipal do antigo Distrito Federal, baixou uma determinação no sentido de "que os livros didáticos só sejam adotados no ensino municipal quando denominarem de Brasileira a língua falada no Brasil (Diário Oficial, 17-09-1935, Atos do Poder Legislativo da Prefeitura do Distrito Federal). Transcrevem-se adiante itens do decreto: "1º Os livros didáticos, relativos ao ensino da língua serão adotados nas escolas primárias e secundárias do Distrito Federal quando denominarem de "Brasileira" a língua falada e escrita no Brasil; 2º Nos programas de ensino, os capítulos referentes à língua pátria deverão referir-se, exclusivamente, à língua brasileira; 3º As denominações das cadeiras de ensino da língua pátria, em todos os estabelecimentos de ensino mantidos pela Municipalidade serão imediatamente substituídas pela denominação "Língua Brasileira."

Como foi que uma decisão dessa natureza não se levou em consideração e passou para os atos que não se cumpre, como há inúmeros no Brasil?

A filologia brasileira e os professores de vernáculo teimam em não enxergar a evidência da transformação radical que está sendo operada na fala e na escrita da língua usada em nosso país. Os professores continuam a ensinar uma língua totalmente defasada em relação ao uso. Quem faz uma língua é o povo, todos sabemos disso. Desde o século XVI que a nossa está sofrendo um impacto violento das novas condições geográficas, políticas, sociais, literárias, interpretados pela população local. Inúmeros são os testemunhos que referem essa transformação. E os escritores utilizam as formas novas e as interpretam, em sintonia com a fala corrente. Exemplo gritante é o de Gregório de Mattos, criador de uma tradição nova que a linguagem literária adotaria e desenvolveria através dos séculos. O Padre Antônio Vieira escandalizou os ouvintes em Lisboa, ao pregar com o sotaque brasileiro (já no século XVII). Ele mesmo recomendava aos noviços na Bahia que seguissem a língua "brasílica" ao pregar aos silvícolas.

Há um divórcio muito profundo entre o que ensaiam os filólogos tradicionalistas e lusófilos e o que pensam e praticam os escritores. Os primeiros fazem finca-pé na defesa das normas lusas. Perguntei certa feita a um professor se ele considerava erro, numa prova, o aluno escreve - eu vou lhe visitar hoje. Imediatamente respondeu que sim. E se seu filho, na mesa, disser coisa semelhante, que fará? Ele embatucou.

Enquanto isso os escritores, na linguagem literária, há muito tempo, já oficializaram a língua falada, já a introduziram na sua escrita, já lhe deram foros de cidade. E a evolução dessa prática só tem sido crescente e alarga-se. Ninguém conseguirá deter essa onda, nem toda a filologia tradicional junta.

O que temos de fazer é adotar logo a denominação "língua brasileira" como título da nossa língua.

Os holandeses assim o fizeram em relação à língua materna - a alemã. Hoje só se referem à língua holandesa e não gostam quando alguém lhes fala em alemão.

Por que continuamos com essa atitude de subserviência e não partimos para dar curso à resolução da Câmara Municial do antigo Distrito Federal? É uma opção que se impõe a um povo de 130 milhões de habitantes, senhor do seu destino. Aliás, já Gonçalves Dias empregou a expressão "língua brasileira". (1983)

XVII - POR UMA FILOLOGIA BRASILEIRA

A diferenciação lingüística do Brasil é um fato insofismável, e a própria linguagem literária veio progredindo no mesmo sentido, tendo-se acelerado a partir do Romantismo. José de Alencar defendeu-se e o próprio Gonçalves Dias já fala em língua brasileira. Há um grande divórcio entre os escritores, que a praticam, e os filólogos, que propugnam uma intransigente fidelidade aos cânones portugueses. Sobretudo, no século XIX, os filólogos e gramáticos optaram por essa orientação, o que redundou num recuo em favor da norma lusa. A discussão em torno do Código Civil, em 1902, quando se digladiaram Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, constituiu o clímax dessa reação lusófila. Outro fator importante na mesma direção foi a influência de um pseudo-filólogo, Cândido de Figueiredo, ao iniciar a moda dos consultórios gramaticais do que se deve ou não deve dizer, como se a linguagem de um povo fosse um fenômeno resultante de pressão de cima para baixo, consoante uma teoria do certo ou errado, que a lingüística moderna pôs por terra.

Mas os consultórios difundiram-se por todo o país, e o ensino do vernáculo a se fazer com a linguagem submetida a uma camisa-de-força. Quem estudou a língua nas primeiras décadas do século XX sabe disso e sabe como foi grande o fosso entre a língua falada e a escrita. E assim foram também educados os professores de português.

Por isso, a codificação da linguagem dominante no país não foi efetuada. Poucos eram os que reagiam na defesa da fala brasileira.

Aos poucos espaçadamente, sempre apareciam os que se situavam do lado de cá. Não era fácil porque a presença da filologia lusa era maciça e prestigiosa, e os que não seguiam cegamente não eram levados a sério.

De qualquer modo, temos adquirido cada vez maior consciência de que se impõe a criação e consolidação de uma filologia brasileira, dedicada ao estudo e codificação da linguagem brasileira, fenômeno vivo de mais de cento e vinte milhões de falantes. Ainda temos o vezo herdado de malsinar a fala corrente e coloquial dos brasileiros, sobretudo a dos jovens, que estão produzindo verdadeira revolução nesse particular, com a agravante de se espalhar através da televisão e outros meios de cultura de massa. Não há gramática tradicional que resista à profunda transformação que se está realizando graças à juventude, que não sofre o que sofreram os seus pais e avós - a escravização à norma tradicional através da escola, que era instrumento altamente reacionário e retrógrado, como ficou afirmado acima. Para isso, concorreu muito a decadência do ensino oficial arcaizante do português.

Sem dúvida que existe uma pequena mas alta linhagem de filólogos brasileiros independentes, cujo exemplo e lição têm que ser considerados quando se pensar em estabelecer uma filologia brasileira. Pergunto sempre se os holandeses pensam no idioma alemão sempre que falam e redigem suas gramáticas da língua neerlandesa.

Nós temos uma boa plêiade de filólogos precursores da gramática da fala brasileira, que está na linha do pensamento de Alencar a Mário de Andrade. Aí se encontram um João Ribeiro e um Said Ali, um Antenor Nascentes e um Clóvis Monteiro. Este último, em tese notável, estudou as diferenças entre o português da Europa e o da América, reconhecendo assim o processo de diferenciação, a que Nascentes, num gesto precursor em favor da nossa originalidade, chamou de idioma nacional, chamando a atenção para fatos como o "lheismo" brasileiro, isto é, o uso de "lhe" em lugar do "o" com verbos de regência acusativa, fato generalizado no Brasil: eu vou lhe ver, visitar, convidar, e inúmeros outros que se tornam característicos da linguagem brasileira. É um caso típico de anacronismo um professor marcar erro em trabalho de aluno que escreve "vou lhe visitar hoje", quando sabe que todo o mundo fala assim no Brasil. E este é um fato de sintaxe e não de vocabulário ou sotaque. Esses e outros fatos é que devem ser coletados na elaboração de uma filologia brasileira.

Mas a grande figura dessa luta foi um Professor da Bahia, que, intimorato, enfrentou o maior bastião da reação, a congregação do Colégio Pedro II, com uma tese revolucionária na teoria e na prática que defendia - que eram os valores da linguagem brasileira. Chamou-se Herbert Parente Fortes, e sua obra de vários volumes é um começo e um exemplo do que deverá ser um dia a filologia brasileira. Vanguardista, ele tinha a coragem das idéias que formara, e as afirmava sem rebuços. Vi-o em atitude de verdadeiro espadachim, a esbravejar contra os preconceitos e doutrinas estabelecidas pela inércia e subserviência. Um bravo, cuja obra servirá de modelo aos estudiosos e pesquisadores futuros da nossa realidade lingüística. (1983)

XVIII - O ENSINO DO VERNÁCULO

É de comprovação facílima o fato de que o uso do vernáculo no Brasil vem sofrendo nas últimas décadas uma sensível queda de nível de qualidade. A cada hora, através da imprensa falada, tomamos conhecimento das verdadeiras barbaridades cometidas sobre o uso normal da língua. Há dias, uma personalidade de destaque de um de nossos parlamentos dizia tranqüilamente que "nenhum de nós podemos". Coisas desse jaez ouvimos a todo o momento, conseqüência do péssimo ensino do vernáculo atualmente em vigor.

É claro que nesta censura não estão incluídas as legítimas transformações da nossa língua - oral e escrita - e que vão constituindo a diferenciação lingüística no sentido de se criar a língua brasileira, fato contra o qual não há barreiras que se possam opor. Só a história poderá dar a confirmação dessa assertiva. Não há que confundir as duas faces do problema. No Brasil, a evolução lingüística é um fenômeno irrecusável que só os filólogos e professores reacionários não querem reconhecer. Há fatos lingüísticos de gritante significação - não apenas na área vocabular e fonética, senão também no campo da sintaxe - que falam bem alto quanto à tendência diferenciadora, cada vez mais forte. É caso semelhante ou idêntico ao que ocorreu com os holandeses, que, diante da diferenciação evidente em relação ao idioma materno - o alemão - decidiram batizar a própria língua como holandesa (neerlandesa) e não toleram que se diga que eles falam alemão.

Nós aqui também não levaremos muito tempo para adotar a denominação de língua brasileira, quando se solidificar o processo da descolonização e vencermos o sentimentalismo e saudosismo que ainda nos amarram.

Mas não confundamos as coisas. Dizer "nós vai" ou "nenhum de nós podemos", é simplesmente ignorância, jamais tolerada por qualquer gramatiquinha da língua brasileira. Isso é bem diverso de um fenômeno como "eu vou lhe visitar hoje", e "eu lhe convido para jantar", "há muito tempo não lhe vejo, lhe encontro", ou então "não estou lhe falando", etc. fenômenos esses da linguagem corrente em todo o país, e que, como muitos outros nenhuma gramática normativa tradicionalista jamais conseguirá corrigir. São formas dominantes do país, de acordo com a nossa sensibilidade, ritmo e modo de ser. Esses fatos e muitos outros formarão a nossa gramática, entendida ela como o registro dos fatos da língua de um povo. E não será admissível exigir que um povo de 130 milhões, em franca explosão demográfica, se sujeite às normas tradicionais de outro povo, por maiores que hajam sido os laços de subordinação por todo o modo lamentável.

A literatura já vinha, aliás, integrando, incorporando à escrita muitas formas que eram consideradas espúrias pelos gramáticos. Basta observarmos o que se passou no século XIX entre os maiores escritores para vermos a que ponto a diferenciação lingüística já operava. E não era uma prática inconsciente, como o prova, a pregação de José de Alencar, que sabia o que estava afirmando, senhor que era das teorias lingüísticas de seu tempo. E como o demonstra a reação lusa contra a escrita brasileira, exemplificada no caso comprovado de Raul Pompéia que teve o seu O Ateneu corrigido por mão criminosa, em Paris, para enquadrá-lo nas normas lusas tradicionais (veja-se a "Introdução" à minha edição do grande livro nas Obras do escritor em publicação pela Civilização Brasileira).

Com a coragem de sermos brasileiros, estamos agora na crescente comprovação e conscientização da libertação dos laços arcaizantes em nosso mundo novo. Tanto a literatura quanto a língua, ao lado de outras manifestações de nossa alma, como a música popular, evidenciam que somos uma civilização nova, com defeitos graves, porém com muitas qualidades, reflexos do que poderemos chamar o caráter brasileiro. Nossa literatura e nossa música popular são as maiores de toda a América. Nada devemos mais à Europa, no sentido de influência dominante. Não há dúvida que num mundo cada vez mais unido temos relações e recebemos contribuições válidas. Mas não somos dominados nem dependentes. Vivemos a nossa vida, que é peculiar e de características inconfundíveis traduzidas em nossas formas de vida, como a literatura, a música popular,a língua. Que são inconfundíveis. Que são fortes e originais. (1983)

XIX - ESQUERDA E DIREITA

Teima-se e reteima-se no mundo contemporâneo em classificar os homens - intelectuais, escritores, filósofos, religiosos - dentro de dois grupos: esquerda e direita. Sempre reagi contra esta redução simplista. Seguindo meus mestres dos grupos franceses da década de 30 - em torno das revistas Esprit e Ordre Nouveau - recusava-me, e ainda assim penso, a ser arrolado, como intelectual, dentro daqueles grupos. Ni droite, ni gauche, ensinavam eles.

Sabe-se a origem desta divisão no vocabulário político. Foi na Revolução Francesa. A princípio, tinham apenas significado topográfico: sentavam-se alguns à direita do presidente, durante a Assembléia Constituinte de setembro de 1789, defendendo um poder monárquico forte. Em face dessa direita contra-revolucionária, à esquerda colocavam-se os fiéis à Revolução, reivindicando os seus princípios integralmente. De uma colocação puramente topográfica, pelos assentos na sala das sessões, logo a divisão adquiriu com ação ideológica ou doutrinária, ou nuances de opinião. A história política francesa, desde então, jamais abandonou a divisão, que se espalhou pelos demais países da Europa.

O que é curioso, como mostram os historiadores, é que nunca houve só uma esquerda ou direita homogêneas. Ao contrário, sempre existiram várias direitas e várias esquerdas. E mais: diversas direitas transformaram-se em esquerda e vice-versa. E são típicos os exemplos da Revolução Francesa, que teve início à esquerda e acabou à direita: Napoleão; e a Revolução Russa também começou à esquerda, Lênin, e passou para a direita, com Stalin. Isso mostra como é superficial a separação, senão sofística e demagógica.

O verbo acima de tudo. É notório que muitas divergências humanas se originam em questões de vocabulário e de semântica. Precisá-los certamente seria um começo válido e fecundo de paz. A Torre de Babel é um símbolo demasiado significativo. É comum verem-se pessoas discutindo ou em desavença por uma simples ignorância do sentido que emprestam, uma e outra, aos termos ou expressões.

Mas a repugnância pela fórmula direita-esquerda ainda tem outros aspectos. A vida humana fundamenta-se em valores. Se examinarmos os princípios de que se apropriam a direita e a esquerda, veremos quão absurdas são estas posições. Há valores que são situados à direita: ordem, disciplina, hierarquia; outros à esquerda: progresso, liberdade, justiça. Jesus Cristo, ao expulsar os vendilhões do templo, era direitista; ao pregar a justiça e combater os ricos, era esquerdista. Pode-se, a um tempo, às vezes ser anticlerical, isto é, esquerda, e não ser anti-Ecclesia, isto é, direita. Freqüentemente, há quem se coloque à direita ou à esquerda por uma tendência de temperamento ou comportamento.

Assim, nenhum homem enquadra-se rigorosamente à direita ou à esquerda. A não ser os fanáticos, os extremados radicais. Esses estão fora da razão e do raciocínio lógico. São homens da inquisição, da fogueira, do fuzilamento.

***
O intelectual legítimo não pode situar-se de qualquer dos lados da barricada. O intelectual é o veículo ou o instrumento do espírito. E o espírito sopra onde quer. O intelectual autêntico foge e refoge a classificações simplistas. É um defensor de valores e princípios - que podem ser vistos à direita como à esquerda. E ele não renuncia sobretudo à sua liberdade de pensar. Pensar é livre pensar, ou, como diz o nosso Milôr Fernandes, livre pensar é pensar. E livre pensar repele enquadramentos, enjaulamentos, de qualquer natureza.
E há intelectuais que, mantendo-se fiéis à sua liberdade espiritual, nunca estiveram nem à esquerda nem à direita. Todavia, os fanáticos da direita atribuem-lhe esquerdismo, e os da esquerda o enrolam à direita. São vítimas dos dois lados, porque se mantêm em postura de independência como convém ao homem de pensamento. Há outros cuja vida é um constante esforço de progresso e construção e, no entanto, aparecem aos olhos dos fanáticos como direitistas e reacionários, só porque defendem a disciplina e a hierarquia sociais. O rigor do exercício da mente repele essa polarização. Nem direita, nem esquerda. Acima de uns e outros. (1979)

XX - UM CENTENÁRIO BAIANO

Em abril, dia 3, passa-se o centenário de um baiano que muitos serviços prestou à sua cidade: Eurico da Costa Coutinho. Nascido em Alagoinhas, diplomou-se em Engenharia Civil na Escola Politécnica e logo entrou a trabalhar na profissão, ao lado do pai, Eduardo Coutinho de Vasconcelos, também engenheiro. Os dois juntos construíram o edifício central do Ginásio da Bahia.

Pelo ramo materno, ele era neto de Antônio Joaquim Rodrigues da Costa, poeta do grupo "cástrida", assim denominados por Afrânio Peixoto, os da família poética de Castro Alves; e a essa ascendência não deveria ser estranho o gosto de cultivar a poesia que existia em sua casa. Ao seu pai coube a tarefa de editar as Noites Perdidas do sogro poeta e guardar com carinho os originais do drama "Calabar", ainda inédito, o primeiro a tratar literariamente o tema com intenções de fazer justiça àquela figura. O neto reverenciava com carinho a pessoa do avô.

Depois do prédio do ginásio, em cujos bancos estudara, o engenheiro passou a São Gonçalo dos Campos para edificar o grupo escolar, em cuja placa de registro da construção está o seu nome. E continuaria. A pavimentação da Ladeira da Montanha foi obra sua, não sem dores-de-cabeça, pois o tráfego não foi interrompido. O mesmo, mais tarde, quanto à da Avenida Oceânica, hoje Otávio Mangabeira. Também foi obra sua a antiga Biblioteca Pública, hoje derrubada com a Imprensa Oficial para dar lugar a um estacionamento. Felizmente, foi respeitado o Edifício da Misericórdia, o que não ocorreu com a Igreja de Sé, outra vítima ilustre da sanha progressista. Foi lamentável que não se houvesse respeitado a quadratura da Praça do Palácio, de origem colonial.

Também a construção civil e residencial encontrou nele o artista, o excelente arquiteto e planificador. Aliás, na época da polêmica em torno da derrubada da Sé, em que se empenharam autoridades civis e oficiais, numa total incompreensão, ainda na década de 20, do valor das obras de artes públicas, ele apresentou um projeto alternativo para resolver o alegado problema do tráfego, solução semelhante à encontrada posteriormente pela rua que costeia por trás a antiga prefeitura. Era facílimo salvar o monumento de arquitetura colonial barroca que era a Sé da Bahia.

Completando os serviços prestados à sua cidade, há o edifício da atual Reitoria da UNBA, e aí está felizmente de pé, o edifício da antiga Secretaria da educação, na Vitória, hoje transformado no extraordinário Museu do Estado. Foi ele o seu construtor. Vítima de uma intriga palaciana, foi promovida uma rescisão de contrato da obra, em benefício de uma camarilha semi-oficial, interessada em negócio e a obra lhe foi arrancada já no final, faltando apenas os acabamentos de portas e janelas. As liberações das prestações da verba foram sendo retraídas, atrasando a construção para pretexto da rescisão. A agiotagem capitalista do outro lado não teve dó, como sempre. E a ruína financeira tornou-se total, com a perda de todo um patrimônio acumulado por uma existência de duro labor, dignidade e espírito público. Até o nome não lhe permitiram na placa oficial da inauguração, aposta na entrada do edifício. Clamorosa injustiça! Não é assim que que se tratam os membros devotados de uma comunidade que tem o dever de zelar pelo seu patrimônio espiritual e moral. A sociedade baiana lhe ficou devendo! (1983)



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No geral naufrágio de ilusões que é a vida em nosso país, criador do maior desencanto, a amizade é o que salva. É o conforto. Bem ensinava o saudoso mestre Alceu Amoroso Lima: viver conforme a sabedoria do coração.

Afrânio Coutinho

1984

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