sábado, 16 de janeiro de 2010

Fichamento de leitura do livro “O prazer do texto” de Roland Barthes

Marcos Holanda


Quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição? Ora, este herói existe: é o leitor de texto; no momento em que se entrega a seu prazer. Então o velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais uma punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz.
Escrever no prazer me assegura a mim, escritor, o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que eu o procure (que o drague), sem saber onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado. Não é a pessoa do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.
O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura. A escritura é isso: a ciência das fruições da linguagem, seu Kama-sutra (desta ciência, só há um tratado: a própria escritura). Como diz a teoria do texto: a linguagem é redistribuída. Ora essa redistribuição se faz sempre por corte. Duas margens são traçadas: uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correto, pela literatura, pela cultura), e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde de antevê a morte da linguagem. Estas duas margens, o compromisso que elas encerram, são necessárias. Nem a cultura nem a destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. Daí, talvez, um meio de avaliar as obras da modernidade: seu valor proviria de sua duplicidade. Cumpre entender por isto que elas têm sempre duas margens. A margem subversiva pode parecer privilegiada porque é a da violência; mas não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, o fading que se apodera do sujeito no imo da fruição. A cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma. A língua se reconstrói alhures pelo fluxo apressado de todos os prazeres da linguagem. Eis um estado muito sutil, quase insustentável, do discurso: a narratividade é desconstruída e a história permanece, o entanto, legível: nunca as duas margens da fenda foram mais nítidas e mais tênues, nunca o prazer foi melhor oferecido ao leitor. Ademais o êxito pode ser aqui reportado a um autor, junta-se-lhe o prazer do desempenho: a proeza é manter a mimesis da linguagem ( a linguagem imitando-se a si própria), a fonte de grandes prazeres, de uma maneira tão radicalmente ambígua que o texto não tombe jamais sob a boa consciência (e a má fé) da paródia (do riso castrador, do cômico que faz rir) . O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: (o autor não pode escrever o que não se lerá) - corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Daí dois regimes de leitura; uma vai direto às articulações da anedota, considera a extensão do texto, ignora os jogos de linguagem; a outra leitura não deixa passar nada; ela pesa, coloca-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento.
Leiam lentamente, leiam tudo, de um romance de Zola, o livro lhes cairá das mãos; leiam depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto se torna opaco, perempto para o nosso prazer.
Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há crítica, pois esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma cobertura imaginária. O brio do texto (sem o qual, em suma, não há texto) servia a sua vontade de fruição: lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos - que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes ondas.
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gestos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.
Ora, é um sujeito anacrônico aquele que mantém os dois textos em seu campo e em sua mão as rédeas do prazer e da fruição, pois participa ao mesmo tempo e contraditoriamente do hedonismo profundo de toda cultura (que entra nele pacificamente sob a cobertura de uma arte de viver de que fazem parte os livros antigos) e da destruição dessa cultura: ele frui da consistência de seu ego (é seu prazer) e procura sua perda (é a sua fruição). É um sujeito duas vezes clivando, duas vezes perverso. Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo ( o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto.
O texto da fruição é apenas o desenvolvimento lógico, orgânico, histórico, do texto de prazer, a vanguarda não é mais do que a forma progressiva, emancipada, da cultura do passado: o hoje sai de ontem, Robbe-Grillet já está em Flaubert, todo o Nicolas de Stael em dois centímetros quadrados de Cézanne. Mas se creio, ao contrário, que o prazer e a fruição são forças paralelas que elas não podem encontrar-se e que entre elas há mais do que um combate: uma incomunicação, então me cumpre na verdade pensar que a história, nossa história não é pacífica, nem mesmo pode ser inteligente, que o texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo (de uma claudicação), que ele é sempre o traço de um corte, de uma afirmação (e não de um florescimento) e que o sujeito dessa história (esse sujeito histórico que eu sou entre outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gesto pelas obras passadas e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca é mais do que uma contradição viva: um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo, através do texto, da consistência de seu ego e de sua perda.
O escritor de prazer (e seu leitor) aceita a letra; renunciando à fruição, tem o direito e o poder de dizê-la: a letra é seu prazer; está obsedado por ela, como o estão todos aqueles que amam a linguagem (não a fala), todos os logófilos, escritores, epistológrafos, lingüístas; dos textos de prazer é possível portanto falar (não há nenhum debate com a anulação do desfrute): a crítica versa sempre sobre os textos de prazer, jamais sobre os textos de fruição. Com o escritor de fruição (e seu leitor) começa o texto impossível. Este texto está fora-de prazer, fora da crítica, a não ser que seja atingido por um outro texto de fruição: não se pode falar sobre um texto assim, só se pode falar dele, à sua maneira, só de pode entrar num plágio desvairado, afirmar histericamente o vazio da fruição (e não mais repetir obsessivamente a letra do prazer). O texto tem necessidade de sua sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de sujeito: fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias; a subversão deve produzir seu próprio claro-escuro.
Diz-se incorretamente: ideologia dominante. Esta expressão é incongruente. Pois a ideologia é o quê? É precisamente a idéia enquanto ela domina: a ideologia só pode ser dominante. Tanto é justo falar de ideologia da classe dominante porque existe efetivamente uma classe dominada, quanto é inconseqüente falar de ideologia do dominante, porque não há ideologia dominada: do lado dos dominados não há nada, nenhuma ideologia. Senão precisamente - e é o último grau de alienação - a ideologia que eles são obrigados (para simbolizar, logo para viver) a tomar de empréstimo à classe que os domina. A luta social não pode reduzir-se à luta de duas ideologias rivais: é a subversão de toda ideologia que está em causa. Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz.
Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste diferentemente conforme o lugar em que é atacada; diz-se que a madeira não é isotópica. O texto tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis. Do mesmo modo que a física (atual) precisa ajustar-se ao caráter não-isotrópico de certos meios, de certos universos, assim é necessário que a análise estrutural (a semiologia) reconheça as menores resistências do texto, o desenho irregular de seus veios.
Em suma, a palavra pode ser erótica sob duas condições opostas, ambas excessivas: se for repetida a todo transe, ou ao contrário se for inesperada, suculenta por sua novidade. Nos dois casos, é a mesma física de fruição, o sulco, a inscrição, a síncope: o que é cavado, batido ou o que explode, detona. O prazer da frase é muito cultural. O artefato criado pelos retóricos, pelos gramáticos, pelos lingüístas, pelos mestres, escritores, pais, esse artefato imitado de uma maneira mais ou menos lúdica: joga-se com um objeto excepcional, cujo paradoxo foi bem sublinhado pela lingüística: imutavelmente estruturado e no entanto infinitamente renovável: algo como o jogo de xadrez. A menos que para alguns perversos a língua seja um corpo? O que é a significância? É o sentido na medida em que é produzido sensualmente. Embora a teoria do texto tenha nomeadamente designado a significância (no sentido que Júlia Kristeva deu a esta palavra) como lugar da fruição, embora tenha afirmado o valor ao mesmo tempo erótico e crítico da prática textual, estas proposições são amiúde esquecidas, repelidas, sufocadas. O prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso de significante.

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Este texto é um fichamento de leitura do livro "o prazer do texto" de Roland Barthes, 1ª edição – editora Perspectiva – traduzido do francês por J. Guinsburg. São Paulo 1977.

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