sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O CINEMATISMO E O PAPEL DO LEITOR IMERSIVO EM MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR.

Marcos Holanda Almeida

1-Introdução

A obra Memórias Sentimentais de João Miramar (1990), juntamente com Serafim Ponte Grande (1980) marca, segundo os críticos, o momento de maior inovação e, por conseguinte, o ápice da prosa inventiva de Oswald de Andrade. Esta inventividade está presente, como já o indica o próprio prefácio do livro, no uso da linguagem condensada e da metáfora lancinante. Esta mesma linguagem fragmentada e telegráfica aproxima-se da estética do cinema, formando assim uma prosa cinematográfica. Como observa Haroldo de Campos (1990, p. 29) o tempo requeria uma nova poesia e uma nova prosa, comensuradas ao cinema.
A inventividade a que empreendeu Oswald de Andrade pode ser notada pela constante ruptura dos gêneros em suas obras. Estas rupturas, que abolem os limites entre a poesia e a prosa, denotam a radicalidade de sua engenhosidade criativa, pois, em meio à produção poética da modernidade brasileira, o romance Memórias Sentimentais de João Miramar desponta como um texto narrativo peculiar e revolucionário no que se refere aos procedimentos de criação literária. O leitor tem um papel importantíssimo nesse tipo de estrutura pois cabe a ele configurar e dar plasticidade a obra. Nesse sentido, podemos dizer que, apesar de não ser uma narrativa digital, a obra exige um leitor do tipo imersivo, capaz de interagir com a sua estrutura re-significando a obra e por conseguinte sua cosmovisão.
A cena narrativa se compõe, assim, no momento mesmo em que a obra é performatizada. O leitor cria em sua mente um espaço virtual onde tem que configurar uma miscelânea de imagens e fragmentos, atuando como um montador de quebra-cabeças, interagindo, portanto, na confecção e na atualização do texto em obra.

(...)professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado no grande professor seu Carvalho. (...)

Como um pintor cubista que junta um olho a uma perna, O.A. seleciona este ou aquele detalhe, reordena o mundo exterior segundo critérios próprios, estabelecendo novas relações de vizinhança e hierarquia.
Cabe ao leitor (imersivo), portanto, dar dinamicidade aos espaços de representação, como salienta Lúcia Santaella, mesmo quando está diante dos espaços representacionais da tela de um monitor, o infonauta já saltou para dentro da cena, é ele que confere dinamismo a esses espaços, tendo se transformado em elemento constitutivo de um ambiente cujas coordenadas infinitas só se limitam pela interface que ele atualiza no ato de navegação.(SANTAELLA, 2004, p-182)

2- O leitor imersivo e o cinematismo Oswaldiano

No ensaio Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade, Antonio Candido avalia a inventividade da prosa oswaldiana acentuando os processos que a aproximam da linguagem cinematográfica:

(...) a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o implícito quanto o explicito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. Freqüentemente a sua escrita é feita de frases que se projetam como antenas móveis, envolvendo, decompondo o objeto até pulverizá-lo e recompor uma visão diferente. (CANDIDO,1970, p.78)

Como vemos, é justamente desse cinematismo descontínuo, como aponta Candido, que surge a presença do leitor imersivo, leitor capaz de articular-desarticular as estruturas (móveis) do preterido romance.
Ainda sobre a presença do estilo cinematográfico da prosa Oswaldiana, culminando, portando, com a linguagem cubista, onde os fragmentos se justapõem e criam novos contextos através de relações de vizinhança e hierarquia, reorganizando o mundo exterior, temos o ensaio Estilística Miramariana de Haroldo de Campos onde o crítico assim se manifesta:

A propósito do Miramar, tivemos a oportunidade de deter-nos sobre a presença do cinema no estilo oswaldiano. A técnica de montagem – que é sobretudo uma técnica de criação de contexto através da manipulação de relações de contigüidade (embora dela possa resultar muitas vezes a metáfora no plano semântico) - , implicando elipses (suspensões ou cortes bruscos), traduz freqüentemente a atitude de metonímia com que o pintor cubista (um Picasso, um Braque, um Juan Gris) reordena o mundo exterior no cor-real estético que é o quadro, selecionando este ou aquele detalhe, estabelecendo novos sistemas de vizinhança, fazendo um olho, por exemplo, ganhar proporções e sobrepujar todo um rosto, uma perna justapor-se sem transição a uma cabeça, reorganizando livremente a anatomia da figura humana e as relações entre as coisas. (CAMPOS ,1992, p.100)
Em Memórias Sentimentais de João Miramar, o leitor assume um papel ativo, cabendo-lhe construir em seu espírito a síntese que dará significado ao romance, como bem acentua Keneth Jakson:

Uma das características mais notáveis deste “romance” do Sr. Oswald de Andrade deriva possivelmente de certa feição de antologia que ele lhe imprimiu... a construção faz-se no espírito do leitor. Oswald fornece as peças soltas... É só juntar e pronto (JAKSON, 1978, p 28).

Desta forma, Oswald reordena toda a nossa visão de mundo, pois seleciona fatos cotidianos relevando a eles uma acentuada importância que nós normalmente jamais perceberíamos não fosse a ênfase na descrição alegórica de seu personagem que acaba valorizando assim os fatos marginalizados da vida cotidiana por meio de seus recortes relâmpago e suas descrições telegráficas. Ao leitor imersivo, cabe, portanto, a ação de dinamizar e recriar os espaços de representação do texto, como acentua Jackson, a construção da obra se faz no espírito do leitor.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald de, Trechos escolhidos por Haroldo de Campos, 21 ed. Rio de Janeiro, agir 1977.

BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II . Campinas: Pontes, 1989.

CAMPOS, Haroldo de - Uma poética da radicalidade , in Oswald de Andrade, Poesias reunidas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974.

CAMPOS, Haroldo de - Miramar na mira ,in Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974.

CANDIDO, Antonio - Oswald viajante, in Vários escritos, São Paulo, Duas cidades,1970.

FONSECA, Maria Augusta.- Oswald de Andrade, São Paulo, Brasiliense, 1982.

JAKOBSON, Roman - in Lingüística e comunicação – Cultrix, 1973.

OLIVEIRA, Nelson (org.), "Geração 90 – os transgressores". São Paulo: Boitempo, 2003.

ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.

Nenhum comentário: